Crónica de Alice Vieira | Recordar quem merece

Alice Vieira

Recordar quem merece

Por Alice Vieira

 

O escritor José Cardoso Pires viveu durante muitos anos na Ericeira. A casa (ao lado da casa onde eu nessa altura vivia) tem uma placa a lembrá-lo. Mas os anos deram cabo da placa, ou seja, as letras já não se veem. Há dias até me disseram que a placa tinha sido retirada — mas isso não posso confirmar e não quero acreditar.

Lembro-me sempre de um dia, eram os meus filhos pequeninos, andávamos na praia e eles tentavam lançar um papagaio de papel. Mas, de repente, o papagaio ficou preso numas rochas — altíssimas, sobre o mar.

E eu vejo de repente o Zé Cardoso Pires, de bermudas e chinelos de praia, trepar pelas rochas, saltar de umas para as outras, (e eu a pensar “ele vai cair! Ele vai morrer aqui !”) e a conseguir tirar o papagaio, e entregá-lo aos meus filhos, dizendo apenas “aqui o têm”.

(Quando, muitos anos mais tarde, ele escreveu o seu romance “Alexandra Alpha”, tive a certeza de que se tinha inspirado nesta “aventura”, na cena em que descreve um anjo a descer dos céus sobre o mar…)

Por tudo isto eu não quero acreditar que a placa tenha sido retirada. Daqui a uns dias vou lá ver o que se passa.

Quando falo nisto vem-me logo à cabeça uma história.  Nos anos 20 Hemingway era então um jovem jornalista a fazer pela vida. Para ganhar uns cobres aceitou um trabalho em Toronto: acompanhar nos seus estudos um miúdo americano que lá vivia.

E, durante toda a sua vida, nunca parou de dizer mal de Toronto: gente horrível, casas horríveis, vinho horrível, tudo horrível — e não se aguentou por lá muito tempo.

Mas, apesar disso, quando vamos a Toronto, só vemos excelentes referências a Hemingway! Um grande hotel com o seu nome, muito bem assinalada a casa  em que viveu, etc. Por acaso eu tive a sorte de ter um guia extraordinário em Toronto, o meu amigo Catos Sousa, um português que já lá vive há muitos anos, e que me pôs a par de tudo.

Devíamos pensar bem nisso — e exigir a reposição (com as letras bem legíveis) da placa com o nome de José Cardoso Pires e, por que não, uma rua com o seu nome.

 

Alice Vieira


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia, sendo considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


 

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