Recordando António Reis
Alice Vieira
Para muitos, o nome de António Reis dirá muito pouco.
Haverá quem pense tratar-se de um dos fundadores do PS –mas não, não é esse.
Outros, mais bem informados, falarão talvez do cineasta, realizador de filmes como “Jaime”,“Trás os Montes”, “Ana”, e outros.
E sim, aí acertaram.
Mas aquilo que eu hoje gostaria aqui de recordar não é essa sua faceta—mas outra, e essa sim, quase completamente ignorada : António Reis foi um grande poeta português.
Sempre poeta em tudo o que fazia, ou dizia. O único que eu conheci que era poeta a tempo inteiro.
Escreveu muito pouco: “Poemas do Quotidiano “ e “Novos Poemas do Quotidiano”, publicados em 1957, e depois em 1977. E esgotou. E desapareceu.
Soube agora que acaba de aparecer nas livrarias uma nova edição.
Ou seja: foram precisos 40 anos para que alguém—neste caso Pedro Mexia, da editora “Tinta da China”– se lembrasse de os colocar de novo nas nossas mãos.
Poeta do quotidiano, dos dias cinzentos desta cidade
( “depois das 7/ as montras são mais íntimas:/a vergonha de não comprar não existe/ e a tristeza de não ter é só nossa”)
dos gestos sem história.
Fui muito amiga de António Reis—que morreu muito novo,em 1991, na sequência de uma gripe que degenerou em pneumonia.
Mas, depois destes anos todos, ainda está muito presente na minha memória.
Vejo-o sempre a bater-me à porta, num dia de Julho muito quente de 1969. Eu estava inquieta porque a minha filha, então com 3 meses, recusava qualquer lençol e só dormia com a fralda em cima da pele, de certeza que a criança ainda acabava por se constipar!! Mas o que realmente nesse dia me importava—como a todo o mundo…– era saber que, dentro de momentos, o homem ia chegar à Lua.
Tudo a postos na sala, televisor, rádio, uísque, água, balde de gelo—e a varanda escancarada para a noite. Não se podia pensar na lua, sem olhar para ela, naquela madrugada entre todas única.
Foi então que tocaram à campainha. Na minha frente o António, pequenino, magro, boné na cabeça e aquele sorriso manso que tinha, de criança que se esquecera de crescer. Naquele tempo o António era muito mais poeta que cineasta, os tempo de “Trás os Montes” ainda vinham longe.
“Onde está a menina?”, perguntou. “Porque não está ela aqui?”
Tentei explicar-lhe que, aos 3 meses de idade, o que ela queria era uma boa noite de sono e, de resto, que entenderia ela daquela excitação toda?
“Entende tudo”, disse-me com ar sério. “Vai buscá-la”.
Aos poetas nada se recusa, e lá arrastei o berço até à sala.
“Para ali”, disse o António, apontando a varanda aberta.
E eu que, momentos antes, tanto me inquietara pelo facto de a criança estar destapada dentro do quarto, nem por um segundo me inquietei ao deixá-la, só de fralda sobre a pele, ao fresco da varanda.
Foi uma noite como nunca houve outra : o António colou-se ao berço da Catarina e levou o tempo todo a falar com ela e a apontar para a lua.
O que lhe dizia ao certo não conseguia entender. O António tinha uma voz murmurada e, naquela madrugada mais do que nenhuma outra propícia a sons de mistério e segredo, não conseguia perceber que palavras saíam dos seus lábios.
Acho até que nunca percebi se o António falava com a minha filha, ou com ele próprio, ou com a lua, ou com os deuses.
Só sei que, de repente, toda a sala se inundou com o riso da Catarina.
A minha filha tinha rido. “Dobrado o riso”, como se costumava dizer.
E todos largámos o televisor, a rádio, os avanços da humanidade no momento em que um homem, do imenso deserto lunar, comunicava com a terra—para ficarmos em silêncio diante de um berço onde uma criança de 3 meses e um poeta ,um pouco mais velho do que ela, comunicavam sabe-se lá através de que misteriosos processos, naquela noite de todos os milagres.
Para mim, nunca o António escreveu poema tão belo como este.
Que, evidentemente, não vai aparecer agora na reedição do seu livro.
Mas tenho a certeza de que todos aqueles que hoje me leram—e espero que sejam muitos a folhearem agora as páginas da nova edição—o vão encontrar em todas as palavras.