Crónica de Alice Vieira | O mundo cá dentro

Falava eu na minha última crónica de pessoas de quem eu não sabia nada há anos—e que agora me telefonam.

Para já, devo dizer que o meu telemóvel não para. E ontem, num intervalo entre duas chamadas, liga-me um número que não conheço (sim, a minha lista telefónica também tem aumentado a olhos vistos.. ) Do lado de lá um grito de alegria “Alice, és tu? Que bom ouvir-te”…)  Então era um meu colega tipógrafo dos tempos do “Diário de Notícias” (e eu já saí do DN há mais de 20 anos…) que estava sozinho em casa, e que já não aguentava, até chorava, ele que não era nada piegas, mas agora andava mesmo transtornado, e de repente tinha tido tantas saudades das minhas gargalhadas na redacção que tinha ligado a um colega comum a pedir-lhe o meu telemóvel—e aí estava ele.

Foi um belo presente que eu recebi ontem.

Porque de repente estávamos a falar de colegas do jornal como se os tivéssemos acabado de ver, e o que eles faziam, e o que eles diziam, e o nosso chefe aos gritos, mas minutos depois chamava-nos e pedia desculpa, e ríamos, e a conversa era em discurso directo, “ e eu dizia, ó chefe, olhe que….  E ele respondia, “ você não vê que isso está errado?…”

Não olhei para o relógio e tive pena. Mas que falámos quase uma hora, ai isso falámos.

Depois fui até à janela, e os vizinhos do prédio em frente dizem-me adeus, eu digo-lhes adeus. Até hoje eu nem sabia que aquele andar estava habitado.

E um melro voa e desaparece nas árvores. Nunca soube que havia melros na minha rua.

Faço vídeo-chamadas para pessoas de quem nem sou muito amiga mas que, de repente, me fazem falta, vá-se lá saber porquê

E tantas outras coisas em que nem reparava e agora é como se descobrisse tudo pela primeira vez, e tudo é importante

E para acabar em beleza—e como também há dias prometi aqui falar dele— deixo-vos com um  poema do meu amigo Corsino Fortes:

“Na história   na Bíblia da nossa terra

Se a rocha é página, a pedra é sílaba

Se o corpo é caneta, o coração é tinta

Nem todos os desertos do mundo

secarão as fontes e os poços

que as nossas bocas abrirem

Nem trovões nem relâmpagos rasgarão

as páginas que o nosso corpo escreveu

Na morada da nossa morabeza

todo o diabo perderá o seu inferno

E todo o navio perderá a sua bússola

no coração da nossa bonança “

***   ***   ****

Fiquem bem. E vão olhando pela janela.

Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as outras crónicas de Alice Vieira


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