Falava eu na minha última crónica de pessoas de quem eu não sabia nada há anos—e que agora me telefonam.
Para já, devo dizer que o meu telemóvel não para. E ontem, num intervalo entre duas chamadas, liga-me um número que não conheço (sim, a minha lista telefónica também tem aumentado a olhos vistos.. ) Do lado de lá um grito de alegria “Alice, és tu? Que bom ouvir-te”…) Então era um meu colega tipógrafo dos tempos do “Diário de Notícias” (e eu já saí do DN há mais de 20 anos…) que estava sozinho em casa, e que já não aguentava, até chorava, ele que não era nada piegas, mas agora andava mesmo transtornado, e de repente tinha tido tantas saudades das minhas gargalhadas na redacção que tinha ligado a um colega comum a pedir-lhe o meu telemóvel—e aí estava ele.
Foi um belo presente que eu recebi ontem.
Porque de repente estávamos a falar de colegas do jornal como se os tivéssemos acabado de ver, e o que eles faziam, e o que eles diziam, e o nosso chefe aos gritos, mas minutos depois chamava-nos e pedia desculpa, e ríamos, e a conversa era em discurso directo, “ e eu dizia, ó chefe, olhe que…. E ele respondia, “ você não vê que isso está errado?…”
Não olhei para o relógio e tive pena. Mas que falámos quase uma hora, ai isso falámos.
Depois fui até à janela, e os vizinhos do prédio em frente dizem-me adeus, eu digo-lhes adeus. Até hoje eu nem sabia que aquele andar estava habitado.
E um melro voa e desaparece nas árvores. Nunca soube que havia melros na minha rua.
Faço vídeo-chamadas para pessoas de quem nem sou muito amiga mas que, de repente, me fazem falta, vá-se lá saber porquê
E tantas outras coisas em que nem reparava e agora é como se descobrisse tudo pela primeira vez, e tudo é importante
E para acabar em beleza—e como também há dias prometi aqui falar dele— deixo-vos com um poema do meu amigo Corsino Fortes:
“Na história na Bíblia da nossa terra
Se a rocha é página, a pedra é sílaba
Se o corpo é caneta, o coração é tinta
Nem todos os desertos do mundo
secarão as fontes e os poços
que as nossas bocas abrirem
Nem trovões nem relâmpagos rasgarão
as páginas que o nosso corpo escreveu
Na morada da nossa morabeza
todo o diabo perderá o seu inferno
E todo o navio perderá a sua bússola
no coração da nossa bonança “
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Fiquem bem. E vão olhando pela janela.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as outras crónicas de Alice Vieira