Crónica de Alice Vieira | Falando de Charlot

Alice Vieira

Falando de Charlot

Por Alice Vieira

 

Não sei porquê, mas hoje lembrei-me de ti, Charlot.

De ti, que nunca me fizeste rir.

Lembro-me de ser criança e olhar para a miudagem que enchia a sala do cinema Capitólio, em Lisboa, e todos riam às gargalhadas e saltavam das cadeiras e batiam palmas. As velhas tias olhavam para mim de sobrolho carregado, suspirando pelo frete que era terem de me levar ao cinema nas tardes de domingo.

Nessa altura eu nem fixava o nome dos filmes, exibidos uns a seguir aos outros, sem paragens nem intervalos.

Mas, sob o teu chapéu de coco e a bengala a dançar entre os teus dedos — tu parecias ter sempre os olhos fixados em mim.

E a raiva que eu sentia por não ter sido eu a criança abandonada a ir parar às tuas mãos. Por não andar contigo a fugir aos chuis. Ou a partir vidros. Ou a roubar comida.

Durante muito tempo ainda pensei que um dia virias ao meu encontro e me havias de resgatar dos longos corredores escuros e do desamor das tias que me criavam, e que havias de me levar  pelo meio de todos os circos do mundo, nem que fosse só para aldrabar a polícia, e de me arrastares por estradas que não acabavam nunca.

E havíamos de fugir pelas montanhas do Alasca, tu sempre a protegeres-me, sem medo dos brutamontes que surgiam de todos os cantos, tu sorrindo para mim, comendo botas velhas que escorreriam decerto sabores de mel pelos atacadores.

E eu iria estar sempre a teu lado e havia de te ajudar a varrer ruas e a ganhar lutas com pugilistas com o dobro do teu tamanho, tudo para que a rapariga cega pudesse um dia ver a beleza do mundo.

Depois cresci, morreram as tias, acabaram-se as matinés no Capitólio.

Mas tu continuavas a olhar para mim — só que de outra maneira, enquanto fazias girar o mundo entre os teus dedos.

E então fizeste-me entender que os seres humanos devem viver para a felicidade do próximo  e, em tempo de guerra, exortavas os soldados a lutarem pela liberdade contra todas as ditaduras do mundo,

Fizeste-me sobreviver à infância e à adolescência.

Nunca o esquecerei.

Talvez por isso nunca me fizeste rir.

 

Alice Vieira


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia, sendo considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


 

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