Doutores Por Extenso
Por Alice Vieira
Todos os meus amigos sabem que odeio que me tratem por “você” (“você é estrebaria”, sempre me lembro de ouvir isto em miúda.) Uma vez, eu estava num restaurante, o almoço estava a demorar e eu perguntei ao empregado se ainda faltava muito. “O que é que você pediu?” Então eu chamei-o e disse-lhe “trate-me como quiser, pelo meu nome, por tu—mas não me trate por você.” Passados uns dias voltei lá–e ele ,“então o que vai ser hoje, minha querida?” E eu, “assim também gosto”.E desde então ele trata-me sempre assim.
E também não gosto muito que me chamem Doutora. Doutoras são as médicas e as advogadas. Mas cá neste país todos são doutores e doutoras. (Nunca me hei-de esquecer de um dia , em que estava numa esplanada em Coimbra , ouvir o empregado perguntar a um jovem “então o Sr.Doutor é caloiro?”)
Uma vez estava eu em Vila Real para participar num encontro de literatura. Um elemento da organização liga-me para o quarto . Querem saber se eu sou “Professora Doutora por extenso ,ou sem ser por extenso”, para porem nos convites. Não sei como não desatei à gargalhada. Mas lá lhe fui dizendo que nem por extenso nem sem ser por extenso. “Então, mas a senhora tem um curso, não tem?”
Bom, depois de muita conversa, lá lhe disse: “apresente-me com a profissão que eu tenho : jornalista.”
Então, durante todo o encontro, de cada vez que se referiam a mim ,diziam: ”Alice Vieira—que, como ela insiste em dizer, é só jornalista…”
Mas , nos sítios por onde já andei, tenho tido extraordinárias apresentações…
Uma vez, num encontro numa associação de emigrantes na Suiça (não me lembro em que cidade), o apresentador não fazia a mínima ideia de quem eu era, e aquilo foi mais ou menos assim:
“Então aqui temos esta nossa amiguinha ,que nos vai cantar uma linda canção”
Como lhe fizessem sinais de que não era aquilo, ele emendou:
“Desculpem, esta nossa amiguinha vai-nos contar anedotas!”
Foi lindo..
E uma vez num programa em directo na televisão, eu ia apresentar o Adolfo Simões Muller, ao meu lado, já muito velhinho, que estava a comemorar não sei quantos anos de carreira. O Raul Durão chegou mesmo em cima da hora , só teve tempo de abotoar o casaco, olhar para nós e perguntar:
“Então, como vai o bailado em Portugal?”
E até ao fim da emissão—em direto…-ele nunca percebeu que o Adolfo Simões Muller não era bailarino…nem eu “a senhora que lhe tem orientado a carreira…”
É por estas e outras que eu adoro que, aqui na Ericeira, as pessoas me tratem por “tia Alice”!
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira