Crónica de Alexandre Honrado
Vivemos num mundo em insolvência
A razão e a sentimentalidade cruzam muitas vezes a mesma ponte de vida, encontram-se num entroncamento único e, não se reconhecendo, seguem o seu caminho em direções opostas.
Ocorre-me esta ideia ao ver o estado do mundo, esta insolvência, esta incapacidade patrimonial de satisfazer regularmente as próprias obrigações, a que condenámos um planeta exemplar que, no imenso cosmos, parece ter sido o único capaz de desenvolver-se até à criação de vida. É que os sintomas atuais são terríveis – e piorámos muito nas últimas horas. Cada míssil disparado cava mais profundamente a condenação ecológica da Terra, pelo que destrói do ambiente: qualidade do ar, temperatura ambiental, vida de flora e fauna, morte e destruição, stress inerente – não se aproveita nada de cada tiro disparado. Pior ainda, a morte, que cada projétil visa alcançar, é uma dor individual, nunca coletiva. Quem chora os mortos são os vivos que o estimavam. Ninguém se reúne em multidão para chorar por dias seguidos os milhões de mortos que morreram às mãos de alguns vivos impiedosos e todavia milhões de lágrimas são vertidas, por vezes clandestinamente, entre os que sobreviveram.
O escritor bengali Rabindranath Tagore escreve um livro sobre A Educação Religiosa, em que sublinha que “homens, mulheres e crianças conseguem muito naturalmente considerar-se da mesma família que as aves, os animais, as árvores e as plantas que germinam nos solos” e, ao reler estas palavras, penso que mundo era esse onde Tagore bebia a sua paz?
A insensibilidade junta-se à desrazão. Como certos doentes que “ouvem vozes” e obedecem cegamente a ordens que não existem a não ser na sua debilidade, muitos povos saltaram para os conflitos, uns obedecendo a ditadores reconhecidos (as vozes demenciais), outros a ditadores escondidos atrás de muros protetores (as mais profundas vozes alienadas), gerando como resultado campos de morte, valas comuns, campas cheias, ódios agitados na ponta das metralhas, que são os paus de bandeira dos medíocres. Sempre foi assim ao longo da história. Só os cobardes matam os seus semelhantes. Só os assassinos o fazem com a certeza de uma escolha.
Não tenho a menor queda para nenhum dos lados em litígio, se Rússia e Ucrânia se matam, se Israel e Hamas se matam, se o governo central e um partido político na região de Tigré se matam na Etiópia, se a guerra no Iémen já fez fugir das suas casas quase cinco milhões de vítimas inocentes, se a guerra civil continua em Mianmar, se se desfaz o Haiti, onde, para piorar a situação, tal como no Afeganistão, na Síria, em Marrocos, um terramoto veio somar caos e morte à morte e ao caos em que se sobrevivia tão dificilmente – não tomo partido, porque dos dois lados o terrorismo, os assassinos, a injustiça são protagonistas. Não me peçam piedosas intenções, ou aplausos a quem comanda esses cenários.
Numa época como a nossa, era de jogos – sim, ligamos as crianças aos IPad e lá vão elas, em vez de crescerem “passam de nível”, saem dos infantários para a adolescência e da adolescência para combater com drones e mini-drones, depois de um rasto de mortes, mesmo virtual, na sua formação onde desconheceram a coragem dos rituais de passagem que a antropologia lhes reservara inutilmente -, o grande jogo é justamente a guerra. Assistimos às suas peripécias no televisor mais próximo como um longo campeonato, uma final da taça a duas mãos. Ali, no grande jogo, desafia-se e afronta-se a morte. É a hora dos assassinos e não das suas ideias, crenças, convicções ou ideologias.
Não são causas ou motivações religiosas que, hoje, nos lançam na crise da morte, mas interesses económicos de grande dimensão e a aversão assassina aos valores culturais – igualdade, justiça, fraternidade, que estão na prateleira, a mesma de onde saiu, há muito, a crueldade acéfala do terror.
Alexandre Honrado
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Artigo interessante, embora de uma mente confusa, que não sabe relacionar os Valores éticos e Morais de uma pessoa/sociedade com o comportamento correcto.
Dirigir uma organização que elogia o terrorista Mandela, é não ter noção dos crimes que este cometeu…, em nome da liberdade, igualdade e fraternidade, à semelhança de muitos outros, caso de Hitler e Estaline ou Mao. Só o contexto mudou!