Crónica de Alexandre Honrado – Uma pomba branca

Uma pomba branca
Por Alexandre Honrado

 

A pomba era branca, desceu dos céus, por momentos tapou o sol e assim recortada pela luz ganhou uma dimensão inesperada.

Creio eu, que sou de crenças muito limitadas, que há muitos e muitos anos, para lá de séculos contados, tenha descido assim uma pomba branca lá do seu voo e encantado de espantos e enormes surpresas um ou mais pares de olhos que a tomaram por enviada da luz e coisa de outro reino, certamente imaterial e forrado de espiritualidade. Terá inspirado narrativas e as narrativas são sempre superstições entrelaçadas que resolvem os mistérios que tememos. Desceu dos céus, envolta em luz. Daí a ser mais do que pomba, nem tardou. Umas vezes anjo e outras espírito, talvez santo para quem gosta de coisas assim, de densa santidade não duvides. Digo bem, santidade que se formos a ver bem não é coisa do irreal, para tanto há que descobrir-lhe facetas interessantes: que seja dotado de virtudes, inocência, piedade e pureza.  Isso é coisa de pombas. As mais intensas são as das rochas e vivem à beira mar, mas há outras, não sei se sabes que há mais de 300 variedades de pombas e de pombos (a designação peca no género e atira-se a nós sempre no feminino), um pouco por toda a parte, à exceção do Ártico e do Antártico. Brancas, cinzentas, cor de esmeralda, há quem lhes tenha enorme estima, quem lhes dê características divinas ou imperiais, quem as deteste e chame ratos do céu, porque devastam a passagem com a sua incomparável voracidade campos de cultivo e outros de matar a fome a outras espécies.

A pomba branca desceu dos céus. Gosto do plural – céus! -, admitindo não um e mais exclusivo, mas vários e variados, cada teto para a proteção de cada casa, cada céu para o imaginar e para o imaginário.

Ao descer, a pomba parecia uma estrela, pois vinha em luz.

Ao descer, a pomba, parecia um anúncio de pacificação.

Ao descer, a pomba parecia muito mais do que uma ave.

Não sei se sabes mas as aves não voam misturadas. Um bando de pombas não voa com as gaivotas, teme-as. Um bando de gaivotas não voa com as águias. Teme-as. Um bando de águias não voa sem uma intenção, por vezes temível.

A pomba branca. Pois, a pomba branca. “Na esfera cultural, a pomba simboliza a sublimação do instinto animal. Numa perspetiva pagã, a pomba também simboliza pureza, referindo-se à pureza do amor, mas por complementaridade se associa ao amor carnal e aos instintos sexuais. A pomba é a ave que aparece associada à imagem de Afrodite e Eros, simbolizando a realização amorosa e dos desejos dos amantes”.

Paz, erotismo, pureza. Um presépio pagão podia ser feito só de pombas.

Tenho um quadro na parede, réplica de Picasso, com a pomba branca. Outro presépio, acredito.

É Natal e não cai neve à minha porta. Não avisto pombas brancas. Procuro Júpiter e Saturno, juntos como há muito não estavam, acreditando vê-los a formar uma estrela que mais me parece uma pomba branca. Uma pomba branca, comigo, a adormecer.

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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