Crónica de Alexandre Honrado – Um prefácio sem vergonha

Alexandre Honrado

 

Crónica de Alexandre Honrado
Um prefácio sem vergonha

 

Não sei se cabe nestes textos que aqui faço a escrita de um prefácio. Mas a aventura de fazê-lo é superior ao risco de usar um espaço onde não devia fazê-lo. Se o faço é porque depois vou querer fazer mais e maior (talvez melhor).

A desfaçatez com que o faço, ao prefácio, veio de duas fontes de inspiração: uma, a primeira, prende-se com relativas saudades dos prefácios de alguns livros, prosas capazes de rivalizar com o seu conteúdo ou até de ultrapassá-lo. Outra, a de ter deparado com um título de Georges Simenon, raro entre os seus muito mais populares – no caso Os Sinos de Bicêtre (1963), uma  compra feita em alfarrabista de rua e em período de férias –, onde o escritor belga se confessa, exatamente, saudoso dos prefácios, caídos em desuso, vítimas de outras modas.

Um prefácio é, dito por Simenon, “uma tomada de contacto direto com o leitor” – estamos, portanto, a travar amizade e é o que mais quero.

Seja bem-vindo.

É a altura então de falar do texto antes do texto. E justificá-lo.

Comecei a sua redação desta forma, com esta frase: não somos pródigos em sonhos – como se os temêssemos.

Qualquer dos meus mestres diria que um historiador não deve fazer afirmações destas, mesmo analisando ideias, mentalidades, cultura. Porque ao usar o plural – “não somos” – estamos a generalizar, incluindo-nos. E os povos não são generalizações em nenhuma das suas épocas de vida, mas uma espécie de mosaicos bizantinos, desses que imortalizaram a imperatriz (do século XI) Teodora, e que, de certa forma, só fazem sentido total, enquanto peça de arte e legitimadora de uma essência, quando nos afastamos deles.

É minha convicção, no entanto, que é assim mesmo: não somos pródigos nos sonhos. Nós, os portugueses, em particular. Quando os temos, escurecemo-los de sombras, rondando os pesadelos. E se o fazemos em larga escala, enfermamos de influências profundas, que lhes dão muito pouco de utopia e os levam à estranha carga a que convencionámos chamar Destino.

A nossa história, a dos portugueses, é a de um sonho adiado? Como a de todos os povos. Só que conseguimos sempre uns acordes de fado, um desacreditar que desdenha, um procurar de uma solução messiânica qualquer que evite levar-nos à ação.

Até os que partiram nas caravelas o fizeram por não saber o que fazer no território pobre que abandonavam. E se uma leitura faz deles os mais grandiosos, outras dá-lhes o rosto marcado pelo sol e pelo medo dos segredos do mar e do mundo, que fez cavar as angústias de onde partiram, mais ou menos vitoriosos, para o cais de atraque das suas vidas temerárias.

No século XX e no XXI, por estigmas de governos desastrados, aconteceu-nos quase o mesmo: lá foram os nossos para a diáspora, por não saber o que fazer no território pobre que abandonavam, desafiando novos mares e novos medos.

Fazer História torna-se, no entanto, uma agressão intelectual quando constatamos que somos contemporâneos do nosso próprio tempo.

Enfim, não somos pródigos nos sonhos. Ainda andamos perdidos pelo esboço do nosso débil prefácio.

 

Alexandre Honrado

 

 


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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