Crónica de Alexandre Honrado
O TRIUNFO DA INSENSIBILIDADE (OU PORQUE É QUE NÃO SOMOS NADA ESTÉTICOS)
Somos uma incógnita e nunca conseguimos responder à dúvida dupla: o homem faz a vida ou a vida faz o homem?
Se pusermos ao espelho o homem ocidental de hoje, ele é um reflexo padronizado: veste marcas universais, usando o luxo ou os mais originais gadgets da moda, mesmo por imitação, enquanto adelgaça as formas em ginásios comuns, faz cirurgias estéticas para se aproximar de um padrão qualquer que a estação dita como essencial, conduz (ou sonha conduzir) o carro rápido em autoestradas lentas, paga a fortuna do tal Elon Musk que nos explora, cansa-se a ler e ouve sem cuidado, tem uma cultura debilmente geral e não gosta de ser muito específico. Não faz ideia de uma série de coisas tidas como necessárias à sobrevivência e usa o planeta como se tivesse outro à mão para ocupar caso este sucumba de vez.
O homem ocidental é movido pela patetice americana e pelos complexos europeus que herdou ao longo de séculos de equívocos, excessos e diagnósticos errados.
Exaltando a fealdade, o homem ocidental que somos aposta na grosseria, na distorção, na desconstrução — e, todavia, acha que é o Belo que o mobiliza. Espanca-se, das querelas do trânsito às guerras que inventa, liga os filhos às correntes elétricas que os afastem da euforia de viver, embrenha-se na sua forma mais egoísta de seguir em frente e, com enorme dificuldade, percebe o lodo em que se enterra. Troca fluídos e acha que isso é emoção (ou sexo) enquanto elege violadores e produtores das vozes do coro de ódio; promove a desigualdade, mas sente-se bem: não quer saber de direitos ou de justiça, deu a prioridade aos privilégios. Chega a pensar que é Arte o desastre que protagoniza.
Benedeto Croce deu-nos a entender outra Arte, e fê-lo como um sonhar comovido. Mas se a nossa essência se distancia do sonho e das comoções, onde fica então a Arte nos nossos dias?
Procurei livros recentes, portugueses ou na língua pátria que me provassem o contrário: que no panorama editorial português, através da oferta e da procura de livros da especialidade, existia a prova de que os portugueses constroem bolsas resistentes à indiferença, são menos ocidentais que esse homem-padrão ocidental. Mas o quê?! Para nós, o deserto é a paisagem! Não somos estéticos — isso sabíamos ao passar pelas terras do País construídas sem plano diretor municipal, cada casa do seu tamanho, cor, feitio e aberração —, nem somos dados às artes. E as pobres casas que temos não são pensadas para os nossos frios, calores, comodidades. Há quem recorra ao vão da escada por não ter mais teto que o abrigue! E sobretudo, somos impreparados para sonhar. E isso é o que mais dói. Não temos disponibilidade para ter a arte como parceira de vida. Conhecemos mal a poesia, a pintura, a escultura, a música, o outro lado de um sonhar comovido.
Há sempre uma forma que condiciona a experiência de uma época, tal como há um meio que a define. A frase parece confusa, mas é tão simples, afinal. No passado, encontrávamos formas formais — passe-se a expressão! — que caracterizavam cada época (clássica, gótica, barroca, bizantina…), como produto do meio que as expressava: a pintura, a música, a escultura eram o meio que quantificava socialmente a imagem da vida. A partir do Renascimento, as coisas tornam-se menos lineares. E então nos nossos dias, depois de tudo piorar, consagrámos o pior; a forma que condiciona a experiência da nossa época parece ser definida pelo único traço estético comum ainda capaz de definir-nos: os meios de comunicação de massas, que afinal não só nos identificam como nos caracterizam. Se há uma estética, hoje, ela é a da pluralidade, uma estética do caos, de certa forma. E do erro ortográfico, que alguns desculpam com os Acordos, que nunca dominaram, nem antes, nem depois, nem agora.
O conhecimento sensível é mesmo o triunfo da nossa insensibilidade. Fico a pensar nisso.
Alexandre Honrado
Pode ler (aqui) todos os artigos de Alexandre Honrado