Crónica de Alexandre Honrado – Não sei se me apetece escrever daqui por diante

Não sei se me apetece escrever daqui por diante
Por Alexandre Honrado

 

Não sei se me apetece escrever. Hoje e daqui por diante. Deixei para trás mais palavras escritas ao acaso do que pedras pisados pelo caminho.

É tempo de balanço. Ou não?

Algures, a muitos anos luz de distância deste nosso planeta, alguma entidade, física, orgânica, imaterial, inorgânica, impalpável, incauta ou movida por estratégias, terá enviado um sinal de rádio para a Terra, sim, há muito tempo, que terá sido registada pelos aparelhos humanos, esses que estão ainda no grau zero de todo o desenvolvimento, há pouco tempo. Talvez a mensagem fosse essa: não sei se me apetece escrever.

As principais figuras transformadoras da história do mundo não deixaram nada escrito. Cristo, por exemplo, limitou-se a desenhar um peixe na areia e nem esse sobreviveu.

Há uma inutilidade enorme na escrita, diria mesmo: nas palavras. Pode escrever-se um apelo, que será ouvido. E morrer de fome enquanto transcorre o tempo de ser lido e respondido.

Que importância tem o que se escreveu nas mais antigas civilizações se delas não sobrou um único som apetecível?

O Arnon Grunberd disse que nenhuma história pode ser feita sem um herói, porque cabe afinal ao herói fazer apagar as partes aborrecidas da história. Não temos heróis.

Vivemos num tempo de palavras desperdiçadas – todos creem dominá-las e elas são o desdém desse impróprio esforço -, num tempo em que se apagam os heróis em vez de erradicar as partes aborrecidas da história.

Os heróis – apareçam em qualquer contexto, político, social, cultural, institucional, empresarial, até anónimo! – provocam palavras, poucas de louvor e inúmeras de desdém, ditadas pelo preconceito, a má formação, a inveja alheia. Por isso se fazem cada vez menos histórias, e cada vez mais se repetem as mesmas histórias como se fossem novidade.

Confinados, limitámos o toque físico.

Poupámos palavras de afeto, pois dizê-las em proximidade tem um efeito que a distância macula e castra.

Podíamos escrever, no vidro embaciado, no pó dos carros, na areia da praia, nos muros (pele das casas) ou na pele que nos cobre onde as frases ficam até ao envelhecer, palavras engelhadas e perdidas nas suas memórias originais. Sim, as memórias, sempre elas, a procurar vencer o esquecimento.

Encerro o ano em mim, como uma pequena última joia. Uma palavra perdida.

Não sei se me apetece escrever.

Não sei se e apetece escrever depois de tudo isto que parecendo tanto é apenas uma sílaba mal contada.

Alexandre Honrado

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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One Thought to “Crónica de Alexandre Honrado – Não sei se me apetece escrever daqui por diante”

  1. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Escreva. Escreva sempre por que haverá muitos que o leem e meditam por entre as frases gravadas no papel.
    É um prazer sentir o valor da escrita mesmo quando se pensa que já tudo foi dito; muito falta ainda por dizer por que todos não sabemos muito e falta quem nos ensine, sabendo-o fazer!
    Bom Ano Novo!

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