Crónicas de Jorge C Ferreira | A Caminho do fim

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A Caminho do fim

Vamos desdobrando mar. Descemos. Cada vez mais perto do início. Cada vez mais perto do epílogo. Cada vez mais perto do balanço final. As conversas vão-se sucedendo. Comparações vão sendo feitas. Nunca se deve comparar o incomparável. Cada viagem é uma nova aventura, um novo sonho cantado. Teimamos em não aprender.

Vamos pela rota destinada. Caminhamos até ao fundo de tudo o que aparece. Os cheiros vão-se modificando. O tempo vai aquecendo. Os corpos vão-se despindo. Há quem já ponha cremes. Quem se unte e besunte. As piscinas cheias.

À noite:

“Duas gotas de perfume e um corpo nu”.

Toda a beleza espelhada no mar. Uma calmaria desesperada. Sabemos que nos aguardam novas urbes. Sabemos que há gente que nos espera inquieta. Falamos com o mar. Uma conversa muito nossa. Diálogos que ficam secretos para nosso alívio. Como é bela a fala do mar. Na minha velha casa tinha vários búzios que levava ao ouvido com frequência. O som que ouvia inebriava-me os sentidos. Era um novo viver que nascia em mim. O mar tão perto. Quase lhe sentia o cheiro.

Os bares estão com mais gente. Bebe-se a vida ao ar livre. Um helicóptero vem buscar alguém que está mal. Há um aviso pelos altifalantes. Uma certa agitação. O aparelho aterra e segue caminho. Apenas um caso no meio de um tempo. Uma interrupção na rotina. Há quem queira saber de tudo. Há quem goste de ver sangue. Nada se viu. Já era escuro. A vida corria para a manhã. O mar continuou calmo. A mulher que dormia nua não deu por nada.

Sabemos da próxima cidade. Muito cedo avistamos o seu sombreado. Os recortes do seu carácter. As bandeiras que a anunciam. Sabemos que, quando a invadirmos, tudo será diferente. Alguém nos irá tocar.

Sobre ela escrevi um texto que aqui vos deixo:

Um sabor que não se gasta. Um vício que se entranha no corpo. Saber chegar e saber partir. Procurar um café e esperar por tudo. Um empregado que sabe o que queremos. A bica como gostamos. A esplanada que apetece. Um melro ocupa a mesa ao lado.

Procurar a gente que é do lugar. Tentar compreender o sentido da vida. Esperar pelos que nos dizem algo. Um sorriso. Uma conversa. Por vezes um beijo. 

Galerias e livrarias. Vícios muito antigos. O medo do excesso de peso. A mala a tiracolo a castigar o ombro. Não sei quantas páginas. As estantes cansadas. 

Um bairro muito antigo. As ruas estreitas e limpas. Bandeiras, vasos e flores. Bancos de descansar a vida e ver voos inesperados. Um encanto de que não apetece sair. Calcorrear os caminhos.

Dar liberdade aos sentidos.

É tempo de regressar à “casa” alugada. Tempo de procurar outras avenidas azuis. Depois de caminhar e dar a volta a esta cidade, ficamos, durante algum tempo, sentados num banco a olhar para o vazio e a recordar o já sentido. Contamos os dias para o fim. Tiramos mais uma foto. Tudo vai ficando gravado dentro de nós.

Jantamos com os amigos de sempre. Há olhos que brilham. Há também alguma saudade. Esta vida que não pára!

«Olha que gostei deste teu contar.»

Fala de Isaurinda.

«Sabes, que fico muito feliz quando tu gostas de algo que eu faça.»

Respondo.

«Olha que é raro!»

Responde Isaurinda e vai, o pano na mão.

Jorge C Ferreira Agosto/2018(177)

 

 

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14 Thoughts to “Crónicas de Jorge C Ferreira | A Caminho do fim”

  1. Maria Teresa Pereira

    Poucas pessoas contam como o Jorge a vida/faz nos beber a vida em goladas de palavras sábias/para nós essa bebida é a vida que nos dá em caneta abençoada!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Teresa. Grato pela sua leitura e as suas palavras. Abraço

  2. Maria

    Gostei do que conta em pequenos parágrafos. Bonita maneira de escrever!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Fico feliz com as suas palavras. Abraço

  3. Maria da Conceição

    Também gosto do seu contar Jorge. Espero que o faça por muito tempo
    .Por mim aqui estarei para o ler. Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria da Conceição. Que gratificante é saber da sua presença. Abraço

  4. Célia M Cavaco

    Sempre agradável folhear estas folhas onde tanto contar faz histórias vividas.
    Aquele abraço meu querido amigo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. A vida a correr e a tentar ser vivida. Abraço

  5. Cristina Ferreira

    Assim como a Isaurinda, o que eu gostei “deste teu contar”. Deste e de todos (e sei que a Isaurinda também) que tu tão generosamente nos dás semanalmente a conhecer. Grata. Sempre. E até para a semana. Abraço, querido Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Grato pelo teu comentário. Tentarei continuar a contar. Abraço.

  6. Madalena Pereira

    Mais um relato de uma vida cheia! O mar sempre por perto…Viver é uma arte e o Jorge é um bom autor. Os seus textos têm sempre um brilho especial. Obrigada por partilhar connosco estas experiências mágicas! Um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Grato pela generosidade das suas palavras. Abraço

  7. Regina Conde

    Um pouco mais, conta-nos mais, deixará de ser um texto, mas, sim um livro. Esse teu jeito de ver o mar, essa vida que não pára. A criatura que dorme sem roupa. O início! Dar liberdade aos sentidos. Os livros que se encomendam, a ansiedade de receber, vícios antigos. Serão?! Um abraço amigo Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Contar é o meu desígnio. Irei continuar a contar a vida, espero. Abraço

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