Crónica de Jorge C Ferreira | Tempos e acontecimentos

Tempos e acontecimentos

por Jorge C Ferreira

 

 

Suportar os contratempos. Superar o sofrimento. Acreditar em soluções mágicas. Só que toda a magia tem um truque. É uma farsa bem montada, ou muito rasca, tudo depende dos artistas. Mas ainda há quem queira descobrir como são possíveis tais truques. Criam-se mesas de discussão. Discussões que entram no nevoeiro das noites sem fim. Discussões que tardam em chegar a conclusões que a vida agradeça. Encontram-se através de terceiros. Nunca falam frente a frente. Afinal, que raio de gente é esta? Dizem que é a diplomacia. Há quantos anos nos lembramos de tal frase? Há quantos anos eles pensam que nos andam a enganar?

Há quem reze, quem faça novenas. Outras religiões têm outros preceitos, outros modos de rezar. Muitos são os que têm as suas superstições. Milhares de crenças e descrenças. Amuletos, santos e medalhas da sorte. Uma moeda e bagas de romã no porta-moedas. Tenho um Amigo que, antigamente, agora não sei, durante todo o caminho para casa, que fazia a pé, passava obrigatoriamente o dedo indicador pela parede de todas as esquinas do caminho. Se, por distração, falhava alguma esquina, tinha de voltar atrás e colmatar o erro. Passando o dedo pela esquina nos dois sentidos. Assim iria dormir mais descansado. Havia outro truque, os tais truques, que este amigo fazia usualmente. Estava no café a falar virado de frente para nós e, de repente, tirava com a língua um dente da frente e escondia-o na língua, ficando desdentado e muito sério a olhar para nós. Só ele achava graça a tal malabarismo e assim ficava feliz perante a nossa irritação. Estivemos anos à espera de que um dia engolisse o dente. Mas tal nunca aconteceu.

Apesar dessas e de muitas outras tontices, foi naquelas mesas de café que discutimos, dissemos muitas asneiras, descobrimos muitos livros e crescemos como seres pensantes. Pertencíamos a várias classes sociais. Havia os que andavam no ensino superior, os que, trabalhavam e estudavam à noite, os que só trabalhavam e os que não faziam nada, uns por calanzice ou falta de necessidade, outros por rebeldia. Alguma gente estranha estava atenta às nossas conversas. Só que nós também éramos suficientemente estranhos para os desarmar.

Aquele café era um mundo e tinha um guardião, o já falado Zé do Garfo. Um ser imponente a domar as águas da fonte. Os eléctricos que passavam. Carros poucos. Os engraxadores já tinham deixado a sua esquina. Os marçanos dormiam numa enxerga na carvoaria. Um País de fatos coçados e de calças remendadas. E a guerra, sempre a guerra, onde não queríamos ir. Quase todos tínhamos um plano de fuga se fôssemos mobilizados.

E cá estamos de novo, num cenário de tragédia. Numa guerra impossível de vencer. Numa guerra sem razão. Numa guerra em que o homem das botas teimava em continuar. Seria essa guerra que iria terminar com os quarenta anos de ditadura. Afinal, os que fazem a guerra, são também capazes de fazer a Paz. Um cravo no cano de uma G3 e a pomba da Paz de Picasso.

A nossa diplomacia feita de coragem. Um povo a crescer.

«Olha que voltas deste a esta escrita. Tanta mistura de coisas, mas que acabam por ter sentido.»

Fala da Isaurinda.

«Ainda bem que dizes isso. As coisas andam todas misturadas.»

Respondo.

«Tem cuidado com as misturas.»

De novo Isaurinda, e vai, com um sorriso no olhar.

Jorge C Ferreira Agosto/2024(444)

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.

 


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12 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Tempos e acontecimentos”

  1. Maria Luisa Caetano

    Que mundo triste. Todos dão palpites, mas nada se resolve. Morrem crianças algumas nem viram o mundo. Matam as mães e os bebés que dentro delas eram felizes. Homens odiosos, não suporto olhá-los, ninguém tem poder para fazer parar, esta forma indigna de enriquecer. As conversas no café têm de continuar. O homem do garfo ainda está no mesmo sítio o cafe é outro. Já não é o clássico café onde se reunia com os seus amigos. Tudo acaba, sempre o que é bom e gostamos, menos a guerra. Os homens aprendem pouco. Obrigada querido escritor, por tão bem saber levantar a sua voz. Sempre em defesa dos desfavorecidos e pelo que me ensina. Adorei esta crónica, todas palavras são de verdade, Mestre. Gratidão no meu abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Que bem escrece sobre a miséria que vivemos. Não podemos deixar que a raiva nos domine. Devemos mostrar a nossa indignação por quem faz tomar essas horrendas barbáries. A minha imensa gratidão. Abraço enorme

  2. José Luís Outono

    Sentires puros de caminhos errantes, onde a verdade é uma mera mentira e o engodo, apenas um engano.
    Li e reli, e deparo-me com cruzes traiçoeiras deste mundo dito simbólico e puro.
    Num repente vejo discursos onde a verdade, é a mentira, e a mentira ainda guerreia quem diz o contrário escrevendo rajadas num calar forçoso de quem ama a Paz . Hoje, não tardará muito será uma palavra fora do dicionário comunicacional.
    Imagino o teu sentir, nesta escrita corajosa … amigo estou contigo, mesmo com balas cruzadas ou assimetrias de entendimentos.
    Grande abraço !!!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luis, meu Amigo, Poeta. Como é assertivo o que escreceste. Toda a nossa vida foi vivida a ver guerras, a lutar contra elas muitas vezes. Agora temos as guerras ao vivo para gáudio dos que vivem das audiências. A minha gratidão. Abraço grande

  3. Eulália Coutinho Pereira

    Uma crónica que nos faz pensar e fazer uma retrospectiva da vida.
    Chegámos a um tempo, onde a verdade se confunde com a mentira. A guerra mascara a paz. Assiste-se em directo á destruição da humanidade.
    O Homem não aprende . Repete-se no pior. As coisas andam todas misturadas.
    Tantos sonhos perdidos no tempo. A desilusão aumenta.
    É urgente pôr as coisas no lugar certo. Dar às crianças o direito de viver em liberdade e acreditar num mundo melhor..
    É urgente! Paz.
    Obrigada Amigo por estar desse lado
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália, minha Amiga. Há quantos anos andamos em busca da paz? Com quantas guerras sofremos. A imbecilidade humana parece não ter limites. Os interesses materiais a sobreporem-se a todas as éticaa. A minha profunda gratidão. Abraço enorme

  4. Mena Geraldes

    leio-te enquanto me contes o que viveste.
    enquanto vás às memórias arrancadas à carne viva, algumas soterradas num tão longínquo passado mas ainda a pulsarem,
    outras, para nos deixarem escapar
    um sorriso ligeiro mas devolvido.
    leio-te num impulso
    em meia dúzia de minutos
    num gosto duplicado
    numa espécie de anseio
    na tua voz que poucas vezes ouvi.
    leio-te seguindo as tuas pegadas.
    indo de encontro às tuas viagens no tempo.
    nada entre nós tem o nome de tédio.
    é um parir de labirintos que se interligam
    uma teia onde se demoram os dias
    és sempre o mesmo escrivão que usa uma tinta perfumada. terá a cor do mar?

    sim, eu sei como tu e tantos outros,
    dos truques, das farsas e dos enganos.
    dos compadrios, das podres e pecaminosas irmandades.
    e conheço os que são exímios
    nessas mestrias.
    não há como nos enganarem, descansa.
    e voltas ao teu grupo de amigos e vem de lá o tal sorriso…
    depois terminas recordando a guerra.
    inútil. dispensável. execrável. monstro que se alimentava de homens e de sangue.
    eis que terminas da melhor
    maneira.
    pondo fim a quarenta anos
    de ditadura.
    erguendo o vermelho cravo
    cantando o saudoso abril.
    sendo liberdade !

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena, minha Amiga. Leio-te e fico em espanto. A tua escrita, os teus poemas são tudo o que alguém que escreve gosta de ler. Sabe tão bem. É tão gratificante. A minha imensa gratidão. Abraço muito grande.

  5. Branca Maria Ruas

    De facto, como dizes, as coisas andam todas misturadas. E as guerras misturam-se com ganância, negócios (de armas e outros…), desejo de poder e tantas outras coisas…
    E, normalmente, quem manda não dá o corpo às balas.
    Vivi numa época de esperança por um mundo melhor: MAKE LOVE,NOT WAR!
    Mas, infelizmente, a PAZ no mundo começa a parecer utopia.
    É muito triste que haja tanta gente inocente a morrer por causa das guerras.
    É muito triste que haja tanta gente a sofrer por causa das guerras.
    O MUNDO precisa de PAZ.
    Eugénio de Andrade escreveu “É urgente o amor”
    Para terminar o meu comentário a esta crónica a que deste o nome de “Tempos e acontecimentos”, eu diria:
    “É urgente a Paz no Mundo inteiro”!”

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Tão bom o que escreveste. Depois levaste-me até esse tempo do MAKE LOVE NOT WAR. Fui à Carnaby Street de outros tempos. Revivi aquela música que nos embalou na vida maior. Nós sabemos desse tempo. A minha imensa gratidão. Abraço enorme

  6. Claudina

    Amei a tua crónica Poeta Jorge C Ferreira! Como o Mundo seria maravilhoso sem guerra e sem falsidade.Obrigada pelos teus preciosos alertas.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina, minha grande Amiga. Sempre sonhámos com um mundo onde imperasse o Amor. Não iremos desistir. A minha gratidão. Abraço enorme

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