De ontem e de hoje – Leituras
por Licínia Quitério
Aprendi a ler muito cedo, em jeito de brincadeira, e aos quatro anos já lia com fluência, para admiração de alguns amigos lá de casa que aconselhavam os meus pais a “não puxarem muito pela menina, coitadinha”. Eu brincava com as letras e mal sabia que a brincadeira iria ficar comigo até à já grande velhice. O alfabeto naquele tempo tinha mais três letras que depois foram expulsas – o K, dito capa, o Y, chamado igrego, e o W, pronunciado dublevê. A propósito do K, lembro-me bem da caixa de madeira com garrafas que tinha gravada a negro a palavra KOPKE e que me desafiou a soletrar pela primeira vez tão estranho conjunto de letras.
Este meu desembaraço levou a que os livros “para crianças” se tornassem presentes habituais de adultos que mos ofereciam, pelos anos ou por outras ocasiões mais ou menos festivas, para minha tamanha alegria que não raro dormiam comigo na cama, como se de outros bonecos se tratasse.
Nessa idade pequenina, um amigo de meu Pai, pessoa culta e generosa, iniciou-me na leitura de excelentes obras, responsáveis pelo meu despertar para a literatura que haveria de me acompanhar vida fora. Dos contos dos Irmãos Grimm, dos de Hans Christian Andersen, e de tantos outros, ainda permanecem comigo alguns exemplares, honrosamente amarelecidos, desconjuntados, vividos pelas minhas mãos que com eles foram também envelhecendo.
Teria eu sete ou oito anos quando li pela primeira vez Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Recordo quanto aquele mundo maravilhoso me seduziu. Não, não era uma história para eu entender. Não me era possível. Era um sonhar acordada. Ficava presa nas imagens de um mundo tão diferente daquele que eu conhecia. Foi o livro que me ensinou o que é um narguilé, um arganaz, um grifo. Ainda hoje, quando ouço chamar “chicha” àquele elegantíssimo objecto, logo refilo, “chama-se um narguilé”. Quando o livro ameaçou ficar perigosamente deteriorado, mandei-o encadernar. Uma meia francesa, castanha, com seu oiro na lombada, e uma fitinha de seda vermelha por marcador. Continua um dos meus livros de luxo. Tratei bem da Alice, do gato-só-sorriso, do coelho apressado, até da furiosa rainha de copas. Um livro para crianças? Também, mas um livro para toda a vida. Ainda hoje há nele muitas coisas que não consegui entender. Tenho muito tempo…
Licínia Quitério
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Um encanto.
Vi aqui a minha própria infância ao espelho, de tão parecida com a que descreve. Excepto numa coisa: Nunca consegui amar «Alice no país das maravilhas» nem na infância nem hoje É um dos três ou quatro livros que me fazem sentir «anormal» por lhes reconhecer o valor mas não conseguir sentir o que pessoas que muito admiro sentem.
A sua Escrita, Licínia, essa seduz-me e faz-me bem, seja em prosa ou em poesia. Um encanto duradouro e permanente.