Crónica de Jorge C Ferreira | Miami (2012)

Crónica

 

Miami (2012)
por Jorge C Ferreira

Carlos Gardel Av., Miami Downtown. A Isabel foi a um “Mall”. Eu sento-me na esplanada do “La Provence”. Um café e uma esplanada agradáveis. Tomo um café, bebo uma água e vejo a vida a passar.

Desde que deixei de beber bebidas alcoólicas, a água mineral com gelo e limão passou a ser o meu gin.
É então que o meu olhar se concentra em algo.
Numa negra, já velha, as mamas caídas sobre a barriga. Chega a não se perceber se são umas mamas caídas ou um estômago exuberante. Veste uma canadiana, castanha, quase tão velha como ela, o forro descosido quase a arrastar pelo chão. Nos pés umas meias rotas e umas havaianas.
Deve ser de uma ilha das Caraíbas, de qual não sei nem me atrevo a perguntar. Alguém a quem o tal sonho americano não sorriu.
O cabelo é curto. Um corte de homem. Usa uns óculos com uma armação grande de massa preta, umas lentes grossas, exageradamente grossas. Tudo é exagero.
Tem ar de quem já perdeu o sentido do mundo. Acho que não sabe se a sua ilha é para o Sul ou para o Norte. As ideias que a alimentam são cada vez mais vagas.
Acende um cigarro noutro cigarro, sucessivamente o faz, um gesto mecânico e fuma, fuma, fuma. Uma máquina de devorar veneno.
Expulsa baforadas de fumo pelos lábios grossos e queimados. Há quem passe por ela e faça com a mão o gesto de afastar a nuvem. Aqui muita coisa incomoda muita gente.
Ela sorri, sorri, de vez enquanto ri. Só ela saberá de quê. Está só. Ela e os seus cigarros. Continua a fumar. Continua a sorrir. Nem uma gargalhada.
Tão depressa como chegara e após pisar mais uma beata, decide partir. Uma pressa desusada. Tudo o que faz é estranho.
Pega no seu sujo saco que, acredito, nem ela sabe o que contém, mas, para si, deve ser a sua fortuna e desaparece.
Deve ter ido fumar para outro lado.
Levanto-me e vou buscar mais uma água. O meu tal gin.
Outro acontecimento me atrai.
Anda às voltas com um trolley muito velho e grande. Não sei porque o carrega. Não sei o que leva aquela mala dentro.
Pode ser que seja toda a sua vida. Pode estar vazia. Ser uma mala de nada.
Puxa-a por uma pega remendada e as rodas lá vão respondendo. Desengonçadas, barulhentas.
Atravessa a rua várias vezes, em vários sentidos, faz círculos sem nexo. Será que nos está a despistar, que não quer que saibamos o seu caminho?
É nova, ainda muito nova.
Traz um ombro descoberto. Tem um corpo franzino. Mas um corpo mulato. Um corpo atractivo.
De vez em quando parava como se estivesse a procurar um caminho.
Quando a deixei, estava parada. E olhava em redor.
Talvez a ganhar fôlego para continuar os seus errantes caminhos.
A Isabel chegou, fizemo-nos ao caminho. Escolhemos o mais directo, o mais rápido caminho para o mar.
Teremos feito mal?
«Vocês e as vossas viagens. Tanto tempo estiveram fora dessa vez!»
Fala de Isaurinda.
«Tens razão, foi uma viagem grande. Valeu a pena.»
Respondo.
«Para ti, andar no laréu, é sempre bom.»
De novo Isaurinda e vai, com uma gargalhada enorme.

Jorge C Ferreira Maio/2023(395)

 

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Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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17 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Miami (2012)”

  1. Maria Matos

    Maria Matos, 19/05/2023.
    Li e reli a sua crónica. Que bom viajar. Miami… uma maravilha, e mais maravilhosa a maneira como o Jorge conta a sua viagem. Com pormenores, parece que a vivenciamos…. Adorei. Deliciosa a sua descrição…
    Deixe-nos sempre os seus registos. Obrigada. Abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Matos. É tão bom ter aqui a sua presença. Sempre um texto que muito aprecio. Viajar é olhar bem. A minha gratidão. Abraço grande.

  2. Maria Luiza Caetano Caetano

    Como eu adorei estas suas memórias! A lugares que visitou e também vivências de pessoas, que o seu olhar atento observou. E numa imaginação sem limite, transformou numa história única e nos proporciona, um bom momento de leitura.
    Grata, querido escritor, pelas viagens e por tanto o que me ensina.
    Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza, viajar é encontrar pessoas, diferentes modos de viver, diferentes terras. Saber falar com toda a gente. Assistir aos seus rituais. Experimentar olhar a vida de novo. A minha gratidão por estar aqui. Abraço grande.

  3. Regina Conde

    Nas tuas viagens terás visto muitas vidas inusitadas. Gente que carrega a vida pesada. Os cigarros que acendem nos anteriores. O clima, a cor da pele talvez dourada, o mar de todas as cores. A tua sensibilidade em qualquer parte do mundo é imensa. Crónica muito bem escrita. Abraço Jorge.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza, viajar é encontrar pessoas, diferentes modos de viver, diferentes terras. Saber falar com toda a gente. Assistir aos seus rituais. Experimentar olhar a vida de novo. A minha gratidão por estar aqui. Abraço grande.

    2. Jorge C Ferreira

      Regina. As cores, os sabores e os amores. Por vezes uma esplanada é um mundo a passar à nossa frente. Uma nova maneira de viver. Memórias que nascem, vivem e morrem. Muito grata pela tua presença. Abraço enorme.

  4. Branca Maria Ruas

    Leio esta tua crónica de memórias de uma das muitas viagens que já fizeste pelo mundo e imagino as vidas das personagens que o teu olhar captou.
    O que teriam vivido até chegarem ali?
    Será que ainda existem?
    Cada viagem contém um conjunto de histórias. Umas encadeadas noutras. E há as paisagens, os monumentos, os museus. Mas sem as pessoas com quem nos cruzámos as viagens seriam muito diferentes.
    Obrigada por mais um bela partilha que nos faz vaguear pelo imaginário.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria. São sempre as pessoas o mais importante de uma viagem. O que aprendemos e vemos com elas. Novos modos de estar. Novas roupagens. Beijos e abraços diferentes. A minha gratidão por estares aqui. Abraço grande

  5. Manuel Fernando da Costa Silva

    Uma Crónica de excelência ! Gosto muito ! “Miami”nas suas vivências, no seu estilo e suas cores…Uma delícia. Abraço forte !

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Manuel. Agradeço muito estar neste espaço com frequência. Sinto uma grande alegria por me ler. A minha gratidão. Abraço grande.

  6. Eulália Coutinho Pereira

    Crónica extraordinária. Olhar de Poeta, espírito sensível, que vê para além do que se vê. A vida que transforma gentes. Duas mulheres , com vidas que nem elas próprias conhecem.
    Memórias que não esquecem. Tanto para aprender e refletir.
    Obrigada, Amigo, pela partilha destas viagens.
    Grande abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Sim vamos saber aprender e reflectir. Viajar é isso. Saber amar a vida e o espaço. Correr atrás de nós e encontrar o mundo. A minha gratidão pela sua presença. Abraço enorme

  7. Claudina silva

    Vivências que através das tuas belas crónicas as sinto como também estivesse a observar o acontecimento….Adorei!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Claudina. Que feliz fico de te fazer sentir o que escrevo. Muito grato. Abraço Amigo

  8. José Luís Outono

    Curioso … ao ler-te os traços descritivos, transportam até à minha mente o “filme” que desenhas muito bem.
    Nos momento seguintes, por entre os parágrafos deste “dizer” bem apelativo, sorrio, fico pensativo, ou recuo em parágrafos anteriores , como um rebobinar alusivo à época e vejo com toda a nitidez, apesar dos fumos descritos, o observar do teu acto de partilhar.
    Curioso, ao longo destes tempos, parto sempre para estes encontros, com um mar de atenções, onde mergulho nas tuas caligrafias bem originais, e a actriz Isaurinda exclama parágrafos bem humorados.
    Grato amigo, pela partilha destes momentos vividos e agora regressados ao presente do teu partilhar.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís, meu Amigo Poeta. É uma honra saber que me lês e a forma como me comentas. Comentários sempre assertivos e inspirados. A minha imensa gratidão. Abraço forte.

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