Crónica de Jorge C Ferreira | Sonhar

Crónica

 

Sonhar
por Jorge C Ferreira

 

Já não me lembro que horas eram. Sei que ainda estava escuro. Um telefonema àquela hora não era normal, a notícia também não. Do outro lado do fio uma voz:

«há uma revolução. Lisboa está cheia de tanques. Desta vez é que é. Ouve a rádio.»

Mandavam-nos ficar em casa. Fui para a rua. Ainda estava longe de se consumar a madrugada de todas as madrugadas. Depois foi a alegria imensa, a festa, o sonho.

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E tantos foram os sonhos que conquistámos! Coisas que nos pareciam impossíveis. A vida a crescer. Nós a sentirmo-nos mais gente. Gente respeitada. O respeito pelo trabalho e pelos trabalhadores até aí sempre vistos como carne para canhão. O fim da guerra colonial. A libertação dos povos. Nem tudo foi bem feito. Era impossível. A tarefa era ciclópica. Foram tempos que, quem os viveu, não os vai mais esquecer. Madrugada após madrugada os direitos cresciam aos que sempre apenas tiveram deveres.

E hoje?

Hoje olhamos para tudo o que nos rodeia e vai acontecendo e ficamos irados. Temos, apesar de tudo, uma vida melhor. Temos a Liberdade esse bem supremo. Mas tantos direitos conquistados foram perdidos. O neoliberalismo a impor as suas nefandas ideias. A extrema-direita a ladrar cada vez mais alto. A falta de respeito por quem trabalha. Os patrões sem rostos. Os fundos fantasmas. As barracas a voltarem a aparecer. Para onde vamos? Que futuro?

Vocês não calculam o que eu sonhei! Os caminhos que palmilhei em defesa de uma sociedade mais justa. As manifestações. Os eventos culturais. A festa das eleições. Andávamos todos a aprender a liberdade. Andávamos todos a tentar ser felizes. Tinha começado esse caminho antes da madrugada que Sophia tão bem cantou:

                     25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in ‘O Nome das Coisas’

 

Hoje assistem-se a despedimentos selvagens. Se lerem os Contratos colectivos de trabalho que os sindicatos independentes conseguiram negociar e a selvajaria actual verão a diferença.

Lutam os professores, os oficiais de justiça, os funcionários públicos, os trabalhadores de transportes, da saúde e pouco mais. Estes novos tempos exigem novas respostas. Novas formas de luta. E não venham com a lengalenga de ser ilegal. Tanta ilegalidade que é cometida pelos que têm o poder e tanta impunidade.

A corrupção mata a liberdade. Quando é ao mais alto nível é ainda mais letal. A justiça que não funciona. Os processos que se arrastam, muitas vezes até à prescrição. Noites em que nos custa adormecer. As tais noites longas que pensávamos não ver mais. O cinzentismo. A falta de classe. As gravatas que envergonham os colarinhos. A falta de vergonha. Os representantes dos escritórios de advogados a fazerem as leis.

Tanta coisa que temos para reconquistar. Tantos sonhos desfeitos. Não deixem de sonhar. Não deixem que a vida morra em vós. Ainda queremos descer a Avenida de todas as Liberdades em festa. Temos direito a sermos felizes. Temos de ser reconquistadores de todos os direitos ultrajados. Sempre em liberdade. Nunca se esqueçam.

«Tens tanta razão. Hoje tratam mal as pessoas que trabalham.»

Fala de Isaurinda.

«Sim, hoje há quem trabalhe e não ganhe o suficiente para viver. Vai sobrevivendo. Voltou a caridadezinha.»

Respondo.

«Sabes que te digo, é tempo de irmos todos para a rua descer a tal Avenida.»

De novo Isaurinda e vai, com um ar determinado.

 

Jorge C Ferreira Abril/2023(391)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Sonhar”

  1. Branca Maria Ruas

    A alegria a inundar-nos as vidas. O sonho da Liberdade a concretizar-se. Os presos políticos a serem libertados. O início de um novo caminho onde houvesse justiça e as desigualdades se fossem atenuando.
    Vivemos em euforia durante algum tempo.
    Infelizmente a ambição desmedida de alguns foi crescendo cada vez mais. A solidariedade foi-se diluindo. Os “democratas” feitos à pressa foram minando as instituições.
    Todos os sonhos têm um pouco de utopia mas quem lutou e sofreu pela liberdade antes do 25 de Abril sofreu um duro golpe quando percebeu que o caminho para lá se chegar era muito mais difícil e longo do que parecia.
    Passaram quase 50 anos e há tanto por fazer…
    Por onde se perdeu o sonho de um mundo melhor para os nossos filhos e netos ?
    Já passaram quase 50 anos e há tanto por fazer…
    Não podemos deixar que as desilusões e o desanimo abafem os sonhos que persistem!
    Não podemos deixar de acreditar! Temos de continuar!
    VIVA 25 DE ABRIL! VIVA A LIBERDADE!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria. Sim, minha Amiga, tanto por fazer e tanto que perdemos. Vivemos noutro Mundo. Um mundo tremendo. Mas nunca iremos deixar de viver as utopias. 25 de Abril Sempre! Muito grato por estRes aqui. Abraço grande

  2. Regina Conde

    Muito aconteceu naquela noite. Noite inesquecível. Noite linda. Foi há tanto tempo. Abril está a iniciar de novo. Abraço meu Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Foi a madrugada mais linda. Nunca esqueceremos. Grato pelo comentário. Abraço grande

  3. Maria Luiza Caetano Caetano

    Que madrugada tão bela, querido poeta. Em que o sonho se tornou realidade.
    Tanta verdade, e beleza nesta Crónica. Tudo como diz e muito bem. Maravilhosos momentos se viveram. E tanto já se perdeu. Não deixemos que se perca a liberdade. O sonho não pode acabar.
    Obrigada por lembrar:
    Sophia de Mello Breyner Andressen.
    É muito bom tê-lo connosco, escritor sempre atento e amigo. Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Fomos sonho de tanto sonhar. Alegria de tanto viver. Tudo era novo. Tudo acontecia. Sophia a sua Amiga. Um Poema único. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

  4. Eulália Coutinho Pereira

    Que bela crónica. Regressei ao passado. Nunca esquecerei esse dia em que a voz de Zeca inundava ruas e jardins. A palavra Liberdade ganhava asas. Os sonhos começavam a realizar-se. Muitas lutas se seguiram. Tantos direitos foram conquistados. A euforia própria da juventude, tornava tudo mais intenso.
    Nem tudo foi perfeito.
    Passaram os anos,. Tantos direitos perdidos. O mundo mudou o país mudou, as pessoas mudaram.
    O conceito de Liberdade não é igual.
    As desigualdades acentuam-se.
    Os sonhos tormam-se muitas vezes pesadelos.
    Vamos ter esperança que a sensatez dê lugar á loucura e sede de poder.
    Obrigada Amigo, por estar desse lado.
    É um privilégio poder fazer parte desta viagem.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Que tempo de alegria. Tanto canto livre. Tantos versos. Tantos poetas. A poesia na rua. E o tanto que diz no seu belo comentário. Muito grato. Abraço grande

  5. José Luís Outono

    Tempos perfeitos de conquistas livres, hoje caminhos agrestes plenos de interrogações.
    Ontem a Liberdade simbolizava a democracia, hoje vemos derrotados do ontem a caminharem livres e a insinuarem erros apócrifos multiplicando e baralhando lutas demolidoras onde a Liberdade é um mero símbolo ainda vivo, mas questionador em cada manhã.
    Ser livre e democrata … é um difícil dicionário avaliador dos tempos deste novo século.
    Resta-nos a coragem de gritarmos – AINDA SOMOS LIVRES!
    Adorei ler o teu sentir!
    Bravo!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís, poeta. Esse tempo de imensa liberdade já ninguém nos tira. Nós que sabemos da tristeza em que vivíamos, vivemos com intensidade uma novo realidade. O grito, o canto, a poesia na rua. Grato sempre pela tua presença. Abraço enorme

  6. Ivone Maria Pessoa Teles

    Olhem os anos que andei para trás!! Meu querido Amigo/Irmão foi tal qual dizes. Quase que podia assinar por baixo da tua assinatura. Mas foi tão bom viver AQUELE DIA!!!!!! E os que se seguiram. Como tudo mudou para MELHOR. Que ALEGRIA. Éramos todos IRMÃOS. Agora continuaremos a Lutar para ” descermos a Avenida ” aí, ou aqui, de braço dado . É necessário não perdermos o que se ganhou. LIBERDADE!!!!!!!! Beijinhos abraçados.
    Ivone Teles

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Sim, nós fomos actores da história. Vivemos um tempo único. Ainda vamos descer a tal Avenida. A minha imensa gratidão. Beijinhos

  7. Susana Canais

    As linhas atentas de quem não esqueceu o que custou a liberdade, a luta por um mundo mais justo. É urgente reconquistar os valores de Abril.
    Um abraço Jorge.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Susana. O preço da liberdade é a vida. A vida só tem sentido em liberdade. Nunca esqueceremos a importância dos valores de Abril. Estão tatuados no nosso corpo. Grato pela sua presença. Abraço grande

  8. Lénea Bispo

    Esta é a madrugada que eu esperei … A grande maioria de nós também esperou e felizmente conseguiu- se graças a um descontentamento que até grassava no exército. Juntámos as vontades e hoje conhecemos a Liberdade. Porém, ambicionamos mais . O direito à habitação e ao trabalho por exemplo. Depois de vermos a miséria à nossa volta, dizemos que não foi para isto que se lutou pela liberdade .A desilusão a escurecer- nos os dias que podiam ser bem luminosos …
    Bela crónica, como sempre , meu amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Lénea. Foi tudo tão belo, tão puro. Os cravos eram a nossa nova comida. Os cantores e os poetas vieram para a rua. Foi um coro de alegria. Ainda iremos se felizes de novo. A minhs gratidão pelo teu belo comentário. Abraço grande.

  9. conceição lima

    Amigo, sei bem do que falas…Muito jovem, é certo, mas muito cedo percebi que não havia justiça nem igualdade…Lutei por ela à minha medida. Semeei cravos, icei bandeiras e engendrava sonhos de Liberdade…A tua crónica fez ressuscitar , em mim, a frustração e o sonho …Este não é, decididamente, o mundo com que sonhei, este não é o país de Sophia, este não é o país dos cravos; porém, não deixarei de os semear em todas as estações da minha vida! Obrigada, amigo, por esta crónica que não nos deixa adormecer, que nos agita as consciências.
    Convocas-nos! Presente!!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Conceição. Como me lembro também do meu despertar para a luta contra a tirania. Depois foi aquele sonho que ninguém nos tira. Temos de ser cidadãos exigentes. Muito grato pela sua presença e pelo seu belo comentário. Abraço grande.

  10. Fernanda Luís

    Boa tarde Jorge
    Excelente crónica, com sabor a Abril e a cravos.
    Subscrevo.
    Não podemos ficar aprisionados a desilusões. Difíceis de suportar, lá isso são, mas somos dos que defendem que o sonho comanda a vida. Manter a coerência, sempre!
    Abraço com muitos raios de 🌞🌞🌞
    Fernanda

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. O sabor dos cravos nos canos das G3. A nossa imensa vontade de comer a vida. Temos de continuar a exigir os nossos direitos. Só assim a Liberdade existe. Muito grato pelo seu comentário. Abraço grande.

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