Crónica de Jorge C Ferreira | Marcas de vida

Crónica

 

Marcas de vida
por Jorge C Ferreira

 

Há objectos que são marcas na nossa vida. Objectos que preservamos como se relíquias fossem. Por vezes não têm grande valor material, mas o valor simbólico é enorme. Dias, datas, acontecimentos que ali estão perpetuados. Uma enormidade de valores que nos faz saltar o coração.

Um móvel envidraçado e a nossa vida lá dentro. A nossa vida exposta para quem nos quiser adivinhar. Várias e desencontradas peças. Algumas muito antigas. A vida a andar para trás. Prendas datadas e datas esquecidas. As argolas de guardanapo em prata que nos ofereciam quando éramos pequenos. Uns botões de punho com umas pedras muito especiais. Um anel sem tempo. O sinete, a faca de abrir cartas, um mata-borrão, um cabo de caneta, um aparo e um tinteiro, tudo em prata. Uma medalha muito antiga. Uma foto assinada. O vermelho dos rubis. O verde-esmeralda.

Espreitar, de vez em quando, aquele móvel estreito e elegante, leva-nos a tempos muito antigos. A lugares longínquos. A terras inventadas. Há coisas que nasceram antes de nós. Coisas vividas e divididas e que por aqui se quedaram. Nunca alguém as reclamou.

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Ali repousam os mais antigos em confraternização com alguns mais novos. Os mais novos também já com alguns anos contados. Muitos sinais. Sinais que iluminam coisas já apagadas. Tudo ali, aconchegado, uma família muito unida. Uma vida muito ligada, muito aquecida em braseiras antigas. Um calor concentrado entre corpos e mantas. Amo o meu rádio a válvulas. Amo as fotos dos meus Avós.

Amava a minha primeira televisão e o naperon que a ornamentava. Amo a minha primeira mesa, mesa onde ainda comemos. Tenho saudades do cheiro da cozinha da minha antiga casa, da casa onde nasci. Amo tudo o que sabe a ternura. Uma das maiores alegrias que tive foi ver o meu filho a gatinhar no mesmo corredor de doze metros onde eu também gatinhei.

Esta minha vida já cansada. Vida cheia de coisas já minhas. Muita coisa desencontrada. Muita folha desirmanada. Muita escrita perdida. Muita obra inacabada. Um verso sozinho numa folha à espera de companhia. Uma estória imaginada ainda só em notas alinhavadas. Sete poemas beijados e sete tempos sem tempo. A vida a correr. Um corredor de hospital carregado de macas. Um engarrafamento na autoestrada e a dificuldade de chegar às portagens. Meu tempo desalmado. Minha alma condenada. Isto de não sabermos o nosso fim.

Vestígios da minha antiga casa na palma das minhas mãos. O sabão amarelo. Os sabões já difíceis de encontrar. O jogo da palmadinha com os bonecos da bola, a caderneta das estrelas de cinema, a única que tenho. Só ela estava completa e resistiu a uma raiva destruidora.

As primeiras edições muito antigas assinadas pelos meus amigos escritores. Uma estante especial. A estante dos Amigos. Uma estante que me diz muito do que aprendi. Uma dupla-estante do chão ao tecto. Duas prateleiras ocupadas com os gatos que a minha mulher vai trazendo de vários lugares. Animais estranhos que não reagem a uma festa. Nem um mio sussurrado. Nem um ar assanhado. Tudo calmo naquela vida animal.

Há também um gato de loiça branco que continua a descansar numa cesta especial.

Assim é a vida.

«Hoje deu-te forte. Tanta coisa junta. Com os gatos tens razão. Não dizem nem ai nem ui.»

Fala de Isaurinda.

«É esta minha vontade de me lembrar das coisas importantes da vida.»

Respondo.

«Eu conheço-te! Escusas de estar com desculpas.»

De novo Isaurinda e vai, a cantarolar.

Jorge C Ferreira Dezembro/2022(377)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Marcas de vida”

  1. Ferreira Jorge C

    Obrigado Claudina. Tão bom estares aqui , neste espaço de liberdade. A nossa vida e as nossas marcas. A minha enorme gratidão. Abraço grande

  2. Regina Conde

    Adoro a crónica. Apetece percorrer algumas das nossas vivências, dos aromas das cozinhas onde fomos crianças. Objectos e móveis testemunhas de histórias vividas. Esse teu jeito tão especial de nos transmitires doçura, amor e tranquidade, mesmo quando o poema se desecontra do papel. Meu querido Amigo obrigada por estares aqui.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Eu que estou grato pela tua presença. Sabe bem percorrer vivências únicas. Saborear o impossível. Abraço grande

  3. António Feliciano Pereira

    Boa tarde, Jorge!
    Etapas da vida que nos marcam, numa criancice alegre e em crescimento. Tudo é uma novidade e parece ser de pertença própria todos os dias, como se de um brinquedo se tratasse.
    Boas recordações, antigas e sempre atuais!
    Um abraço, Jorge e Boas Festas!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. É como um filme. A nossa vida a passar frente a nós. Por vezes pensamos que é só fruto da nossa imaginação. As nossas pequenas alegrias. Grato pela sua presença, sempre. Abraço forte

  4. Filomena Geraldes

    Bebo as tuas palavras. Licor de laranja e açafrão.
    Álbum de ir buscar aos sítios onde aportamos.
    Uma imensa tonalidade de emoções.
    As portas escancaradas dos armários.Os pedaços de cerejeira.
    As estantes com vivos seres. Fotografias que falam e respiram.
    Objectos que deambulam pela casa. A lento passo. Débil.
    Esconderijos nossos.
    Como sombras.
    Livros onde os sonhos nunca tinham sono.
    Memórias enclausuradas. Gritadas.
    O odor a cera . Poeira passada a pano.
    As revistas que amiúde nos visitavam.
    Cartas escritas com letra que o tempo devorou.
    Os brinquedos que nunca fugiram do quarto. As nossas mais amorosas lembranças.
    Bebo as tuas palavras. De licor de saudade. E lágrimas.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Escrever para ler os teus comentários. Poemas que nos ofereces. Que bom ter-te de volta. A minha imensa gratidão, sempre. Abraço enorme

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Imagino como olha todas essas relíquias.
    Tanta folhinha de papel bem guardada. Nelas estão escritas coisa que lhe saíram da alma e são inesquecíveis para si, querido escritor.
    Que bom lembrar, “As coisas importantes da vida.”
    Algumas que pertenceram, a quem muito amámos e por elas temos estima. É adorável o que escreveu, senti com emoção cada palavra sua.
    Adoro o que escreve, sempre com verdade e ternura.
    Abraço, meu amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Sempre uma alegria ler os seus comentários. É uma Amiga muito especial, muito presente. Sempre arguta e generosa. A ternura que nos protege. A minha eterna gratidão. Abraço imenso

  6. Isabel Soares

    Uma crónica que se desenrola pela ” descrição ” dos objetos-sentimentos que habitam a casa do autor. A nomeação de várias coisas não coisificadas porque imbuídas de afectos, emoções e sentimentos ; revelando acontecimentos e outros seres,marcando uma vida, inscrevendo-se nela num registo identitário. O passado vivido ( e sonhado) , como alicerces positivos. As raízes e a sua história. Vivências que traz para o presente com nostalgia e muito amor.
    Uma crónica pessoal que religa um tempo passado a um tempo presente e a incógnita do futuro. Este já mais curto que o passado. O sentido da sua vida (e o registo e “catalogação “) lido nos e pelos objectos-sentimentos. Coisas que falam e a recordam. Num presente-passado iluminador de quem foi e quem é.. O amor. Sempre o amor nesse dizer de memórias autobiográficas. Simultaneamente marcas e a marcarem o presente. Este fortemente vivido na e pela escrita. Essencialmente uma vida em que ” tudo” é palavras ( de encanto). A escrita: o fazer e o perder ou abandonar textos. Deixá-los adormecidos para um porvir. Também a tristeza de acontecimentos de agora desgarrados deste escrito.
    Uma bonita crónica sobre a nossa vida em nós. A forma como se constituí no autor. Das marcas da vida às marcas de vida.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Sempre importantes e belos os seus comentários. Uma presença que se tornou imprescindível. Passear pela vida através do simbolismo dos objdctos que nos impactam. A minha gratidão. Abraço grande.

  7. Eulália Coutinho Pereira

    Que belas memórias, meu Amigo.
    Tantas memórias comuns á nossa geração. Acompanhei-o nesta viagem e revejo peça a peça as memórias de uma vida. Vou ao fundo do baú e sinto cada objecto. Memórias dos que já partiram. Com muito ou pouco valor representam uma vida. Com o passar dos anos, tudo está mais presente. Tudo se torna mais valioso.
    Obrigada Amigo por esta viagem magnífica.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Minha Amiga sempre tão presente. Que bom ler as suas palavras belas e certeiras. Viver através dos objectos que são símbolos de vida. A minha eterna gratidão. Abraço grande

  8. José Luís Outono

    Permite-me este desabafo de vivências deste lado, com parágrafos muito iguais ao teu desenvolver de memórias.
    Neste final de dia, abraço-te com muita estima e admiração.
    Por favor não esqueças de continuar!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís, meu Amigo, Poeta. A tua presença neste espaço é importante. Vou tentar continuar para sobreviver. A minha gratidão. Abraço forte

  9. Ivone Maria Pessoa Teles

    Adorei, mesmo. E cada vez me prendo mais a tudo o que era das Famílias passadas e desta Família de já 61 anos. Cada pequeno ” NADA” é TUDO. Gostei muito Obrigada e dá um bejinho à Isaurinda, teu alter-ego e também à tua Isabel. Beijinhos ternos desta Amiga/ Irmã Ivone

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone. Minha doce Amiga/Irmã. Tão bonito o que dizes. A ternura expressa em palavras. Que bom estares aqui. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  10. Branca Maria Ruas

    Objectos cheio de memórias. Relíquias do passado que guardamos no coração.
    “Amo tudo o que sabe a ternura”.
    Fiquei muito feliz por a minha filha ter escolhido viver na casa que foi dos avós e onde vivi até aos 23 anos. E é com muita emoção que vejo a minha neta crescer nessa mesma casa tão cheia de amor, de ternura e de memórias felizes.-
    Obrigada por estas “marcas de vida”.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria. Minha terna Amiga. Que bom ter aqui a tua presença, as tuas belas palavras. Tudo o que te faz sentir feliz se deve ao teu labor e entrega. Gratidão imensa. Abraço grande.

  11. Raul Manuel Freitas Araujo Rocha

    O passado vem entrelaçado a objectos e a momentos,,,Quanto caminho, quanto trilho percorrido! A vida está presa a olhares !!! Carregamos todos um pesado alforge de memórias ! Dão sabor aos dias que se vão esvaíndo…
    O meu abraço e parabéns!!
    BOAS FESTAS!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Raul. Sim, tudo o que diz está certo. Carregamos sempre o que nos marcou. Somos o homem do saco com que nos assustavam. Muito grato pela sua presença neste espaço. Abraço forte

  12. Silva Claudina

    Querido Poeta Jorge C Ferreira como é gratificante ler as tuas recordações ! Amei! Que belas vivências…Obrigada pela partilha ❤ Um forte abraço!

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