Crónica de Mário de Sousa | No 5 de Outubro de 1910

Mario de Sousa

 

Crónica de Mário de Sousa
No 5 de Outubro de 1910

 

Nesse dia, o pequeno Saúl saiu de casa para ir entregar um par de botas novas a casa de um cliente do pai que morava na atual Rua Jardim do Regedor ao Rossio. Eram sete da manhã e o dia apresentava-se fresco o que era bom pois o caminho que havia para fazer seria para ser feito a pé. Naquele tempo, para além de haver muito poucos transportes públicos o dinheiro era escasso para os usar. Por isso as pessoas de menos posses andavam diariamente grandes distâncias a pé.

Saúl pegou no saco com as botas e meteu pés ao caminho. Atravessou o Jardim da Parada, desceu a Rua Domingos Sequeira e percorreu todo o Largo da Estrela. O jardim cheirava bem ainda regado de fresco pela humidade da noite. Desceu a Calçada da Estrela e ao passar em S. Bento começou a ver muita gente na rua e a ouvir tiros. Com a curiosidade de criança e não se apercebendo do perigo que corria, em vez de seguir o caminho do costume, subir a Calçada do Poço dos Negros, Largo de Camões, descer o Chiado e atravessar o Rossio, resolveu ir direito ao Rato na direção dos tiros.

Atravessou o Largo, subiu direito à sua antiga casa no Jardim das Amoreiras entrando na azinhaga que hoje tem o nome da Av. Joaquim Augusto Aguiar. Ainda a meio mas já perto da Rotunda, pode ver muita gente por de trás de barricadas disparando para a Av. da Liberdade e para o Rossio. Do rio Tejo vinha o estampido dos canhões dos navios de guerra lá fundeados, que disparavam sobre a cidade.

Toda a gente gritava que era a República mas o pequeno Saúl não entendia o que se passava e não sabia quem seria a tal República. Subitamente, os tiros na Rotunda calaram-se, o povo começou a descer a Avenida e o Saúl acompanhou-os excitado e já esquecido das botas que levava ao ombro. Quanto mais se aproximava do Rossio mais pessoas se juntavam e quando lá chegou, afogueado e de saco às costas, alguém começou a gritar: ‘Vamos ao Carmo, vamos ao Carmo…!’ e a multidão começou a subir na direção do Quartel da Guarda Municipal de Lisboa. Quando o pequeno Saúl avistou o Quartel do Carmo, já a massa humana descia ao Largo do Município porque, dizia-se, os republicanos iriam falar. Eram cerca das nove e pouco da manhã quando Saúl ouviu um murmúrio crescente e viu um grupo de homens a assomarem à varanda. Eram os republicanos que iriam falar ao povo.

E assim foi. Muito calado, apertado pela multidão e sem perceber porque não aparecia a tal República, assistiu à sua proclamação feita pelo Dr. José Relvas. Cantou-se a Portuguesa e por todos os lados surgiram bandeiras do Partido Republicano enquanto os vivas à República eram ensurdecedores.

De repente Saúl lembrou-se das botas e subiu a Rua da Prata a correr, direito ao Teatro D. Maria II. Toda a gente descia e só aquele rapaz teimava em seguir ao contrário. Com muito esforço lá conseguiu entregar as botas e depois rumou a casa, para Campo de Ourique, onde chegou por volta do meio-dia. O pai e a mãe estavam aflitos pois já sabiam da revolução e temiam pelo filho. Então, cheio de importância e entusiasmo, contou aos pais tudo o que tinha visto e ouvido.

Depois de toda a emoção, nem pai nem filho se lembraram que o pequeno Saúl se tinha esquecido de pedir o dinheiro das botas ao cliente.


Saúl da Conceição de Souza nasceu a 8 de Dezembro de 1899 no antigo Nº. 10 do Jardim das Amoreiras. Era filho de António Maria de Souza e de Maria da Conceição de Souza. Era o mais novo de 4 irmãos.

Aos 4 anos a família mudou-se para o bairro de Campo de Ourique onde o pai abriu uma oficina de sapateiro. Naqueles tempos o sapateiro, para além de remendar também fazia sapatos. António especializou-se em botas de montar cujo cano subia até acima do joelho.

No bairro fez o 1º grau da Instrução primária (3ª. Classe) e aos 11 anos foi trabalhar como aprendiz de serralheiro. Foi crescendo. Tornou-se um mestre da forja, desenhando sempre as peças que depois executava. Ainda hoje Lisboa tem muitas obras da sua autoria: as portas dos então arranha-céus do Areeiro, janelas, portas e corrimões do Restaurante circular de Monsanto e muitos, muitos portões de quintas com a sua assinatura pelas zonas de Sintra, Colares, Moledo, Caneças e Belas. Morreu em 1999 à beira de cruzar três séculos.

O que acabei de relatar acima foi-me contado por ele, o meu Avô Paterno de quem guardo muitas saudades.

Mafra 17 de Março de 2022

Mário de Sousa

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