Crónica de Mário de Sousa | Em jeito de começo!

Mario de Sousa

 

Crónica de Mário de Sousa
Em jeito de começo!

 

Ao aceitar o convite do Jornal de Mafra para esta colaboração quinzenal, aceitei também o desafio da estreia no modo de escrita que é a crónica. Não sei se me vou sair bem, mas espero com sinceridade, produzir textos que os leitores ao lerem, não sintam que foi tempo perdido.

Ora início só há um, e por isso, o primeiro encontro, o primeiro sorriso, o primeiro brilho de olhos são sempre decisivos na forma como a ‘carruagem’ irá mover-se na estrada estreita que é a da relação entre as pessoas.

Por tudo isto lembrei-me de iniciar estas crónicas fazendo uma pequena homenagem a uma das mulheres da minha vida e que comigo se cruzou por volta dos meus sete anos de idade: a D. Carolina que durante três anos foi a minha professora da 2ª à 4ª classe da, na altura, instrução primária.

Já entrada nos cinquentas, estatura média e olhos muito vivos, falava sempre com voz vigorosa, quase de ‘sargento’, mas nunca a vi zangada. Por vezes triste, mas não zangada. Os seus bofetões, reguadas, ponteiradas ou puxões de orelhas faziam maravilhas na ativação de algum neurónio mais dorminhoco, mas assim como sabia castigar, também era rápida a premiar o sucesso.

Todos os dias tomava o pequeno-almoço na sala de aula. Pelas dez da manhã a menina Ana Maria, uma trintona enorme que nos dava Catequese, aparecia com um tabuleiro coberto por um pano alvíssimo, que depunha sobre a sua secretária. A D. Carolina interrompia a aula e num ritual que vi repetir centenas de vezes, destapava o tabuleiro deixando ver e sentir pelo cheiro um pequeno-almoço singelo mas apetitoso. E, porque estávamos em pausa, a D. Carolina enquanto abria o pão e o barrava com manteiga que tirava de uma manteigueira de vidro, o plástico ainda não tinha sido inventado, começava a contar-nos acontecimentos da sua já longa vida; uma viagem ao Portugal das suas origens lá para as bandas de Castelo Branco, da sua aldeia quando nas festas tocava adufe, uma visita a um museu, lembro-me que gostava do Museu de Marinha, uma ida ao teatro para ver a atriz do seu coração uma tal Palmira Bastos, um qualquer castelo de que tinha gostado muito e ali mesmo, entre um golo de café com leite e um resto de pão com doce, descrevia entusiasmada a sua conquista aos Mouros por cavaleiros portugueses destemidos, que empunhavam a nossa bandeira coberta de rasgões e do sangue derramado pelos nossos.

Terminado o pequeno-almoço chamava a menina Ana Maria para retirar o tabuleiro e nós tínhamos quinze minutos de intervalo. Mas o extraordinário é que na maior parte das vezes ficávamos sentados e pediamos que nos explicasse melhor o que nos havia contado.

De uma forma mais de avó do que de professora, nos minutos seguintes ficávamos presos das suas palavras, fosse na leitura de um pequeno texto tirado da seleta de Pires de Lima, fosse de um episódio da História de Portugal, fossem ainda algumas palavras do Padre António Vieira. Foi da sua boca que pela primeira vez ouvi ‘O Estatuário’:

«Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda»

Passaram-se nisto três anos. O Exame da 4.ª Classe foi feito, o Exame de Admissão às Escolas Técnicas superado e o Exame de Admissão aos Liceus cumprido com êxito. Sim, nessa altura, aos 9 ou aos 10 anos faziam-se três exames. Não consta que tivesse morrido nenhuma criança.

Mas ao escolher o que se seguiria havia que deixar o Externato Mestre de Aviz. Quando me fui despedir da D. Carolina abracei-a e chorei, molhando-lhe a cara com o meu beijo sofrido. Devagarinho, muito devagarinho ela afastou-me, limpou-me as lágrimas, fez-me uma festa na cabeça e disse na sua voz de ‘sargento’: olha rapaz, vai lá à tua vida, mas lembra-te sempre do teu colégio e nunca me envergonhes. Volta sempre que precisares de mim.

Morreu aos noventa e muitos anos. Ficou-me a saudade de a ouvir dizer:

“Quando vos perguntarem o nome de grandes estadistas portugueses respondam – Conde de Castelo Melhor e Marquês de Pombal. Se vos disserem que falta um, então, baixinho, olham para o chão e dizem Salazar’

Um abraço para todos,

Mafra, 17 de Fevereiro de 2022

Mário de Sousa

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One Thought to “Crónica de Mário de Sousa | Em jeito de começo!”

  1. J. A. Marcos Serra

    Se não fosse suficiente a beleza da recordação bem condimentada e cativante, há duas frases que, só por si, me satisfariam como leitor. Deixo aos outros leitores o desafio de descobrir quais são.

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