Crónica de Alexandre Honrado – A estúpida ideia de uma “Europa branca”

A estúpida ideia de uma “Europa branca”
                                  Por Alexandre Honrado

 

Dizia a minha avó que a ignorância torna as pessoas atrevidas – o que queria significar que a ignorância torna cada qual capaz de dizer e propagar asneiras e mentiras como se de acertos e verdade se tratasse.

Eu, neto atento e menos delicado, digo agora que a ignorância quando sedentária, quando irrecuperável, é a mãe de toda a estupidez incorrigível.

Não vai longe o tempo, nem cem anos se passaram, da época repulsiva do nazismo, promotor de chacinas e injustiças, funil do mundo ao qual ainda hoje devemos cicatrizes, traumas e uma herança a todos os títulos vergonhosa. Ideologia de cobardes e fracos que recorrendo à força bélica destruiu uma página inteira do mundo e ameaçou a vários títulos a sua continuidade. A esse nazismo devemos alguns dos piores momentos da história atual e da “onda” racista e repugnante que encha de preconceitos o único lugar que temos para uma vida em comum, este planeta que sofre todas as agressões e toda a asquerosa autoafirmação dos seres mesquinhos. Um planeta multicor, feito de todas as etnias e da forma como sabem fundir-se.

Os estudiosos têm provas inabaláveis dessa idiotice levada ao extremo que é o paradigma nacionalista ao qual os mais estúpidos entre estúpidos vão buscar as suas fracas armas argumentativas, querendo convencer-nos de que, em vez de uma raça humana, isto não passa de uma mantinha de retalhos bem definida cor a cor.

Sabemos sem equívoco que o continente europeu nunca foi branco e que somos filhos de imigrantes, de refugiados, e que os povos que primeiro ocuparam este território foram sempre misturados com outros povos, numa salada saborosíssima.

Ignorar esta verdade é fingir que o desejo se sobrepõe ao acontecimento e que a ideologia pode negar a evidência e a própria vida.

Um simples teste de DNA ao alcance das bolsas mais folgadas prova isso mesmo – e não venham para cá com a ideia, igualmente estúpida, de que a ciência não sabe nada e que tudo são patranhas e invenções, porque até uma afta na boca tem explicação quanto mais a ignorância de quem vira as costas ao saber.

Um especialista (dos bons) nestas coisas das origens disse há pouco tempo que “quando falamos de europeus falamos de descendentes de russos e de africanos”.

Lembro-me da velha história sobre Charles Darwin, quando lhe atribuíam a afirmação de que todos descendíamos dos macacos, que terá motivado a aflição de uma senhora da burguesia europeia, levada a exclamar: “oxalá uma coisa dessas nunca venha a ser provada e partilhada, pelo menos junto das minhas amigas”.

Para os pequenos imbecis que dizem agora que a Europa foi sempre branca, a resposta nem sequer implica grande discussão: é mentira. A Europa, felizmente, foi sempre uma mescla de cores. Analisada a nossa origem, um europeu contém partes idênticas de yamnaya (pastores de gado, bons cavaleiros oriundos da Rússia que viveram, por exemplo, junto de Žabalj, na Sérvia); de agricultor anatólico (a Anatólia foi o berço de muitas civilizações no decorrer da história. Embora não tão avançados como as civilizações do Egito ou Mesopotâmia, os hititas, que fundaram um poderoso império na Anatólia central, eram uma das mais avançadas sociedades de seu tempo); e ainda de uma gota (mais pequena) de caçador-recoletor africano.

Os nazis tinham a mania do paradigma ariano, do  homem alto e loiro de olhos claros, aliás o oposto do quase anão de olhos escuros e cabelo ainda mais escuro – para não falar do bigode mais ridículo da história universal – que lhes puxava a canga e a arreata, que os arrastava para a morte e que odiava a raça humana, aliás a única digna desse nome, procurando menoriza-la numa estratificação de efeitos especiais, ligados à cor da pele, às crenças religiosas, às opções sociais e sexuais.

Testes genéticos realizados com restos mortais dos antigos colonos do velho continente, revelam que a Europa é há muito um caldeirão de linhagens imigrantes oriundas de África, do Médio Oriente e das planícies verdejantes do atual território da Rússia. Pobre ignorante, assassino tolo, esse Hitler de opereta e crematórios.

Para alguns, parece chocante aceitar que Jesus Cristo era um judeu palestino, de cabelos e olhos castanhos, de pele bastante escura, mas o que se pode fazer perante a realidade que não vem de uma produção cinematográfica ou da cabecinha de um Adolfo nosso contemporâneo? Para outros será chocante verificar que os nazis idolatravam muitos aspetos da sociedade americana: a cultura do desporto, os valores das produções de Hollywood, a mitologia da fronteira. Em 1928, cinco anos antes de chegar ao poder na Alemanha, Hitler notou, com aprovação, que os colonos brancos dos EUA haviam “massacrado os peles-vermelhas; eram milhões e ficaram centenas de milhares”. Quando falava do Lebensraum, a necessidade alemã de “espaço vital” no Leste Europeu, o pequeno Adolf costumava ter em mente os EUA. Há quem considere que a maior década do cinema é a década de 20, pois foi caracterizado pelo início do cinema falado, que provocou uma mudança nos hábitos daqueles que frequentavam e faziam cinema. Foi nesta década, que se popularizou o chamado American way of life e onde surgiram génios como Charles Chaplin e Walt Disney  e ainda  o famoso estúdio Metro-Goldwyn-Mayer. Imperialismo, expansionismo, uma raça pura sobre todas as raças, uma emanação norte-americana que inebriou o fraco cérebro do pequeno Adolfo e do seu ministro da Propaganda, o tristemente famoso Paul Joseph Goebbels, que apesar do seu Doutoramento em Filosofia e Literatura romântica pela Universidade de Heidelberg (obtido na Alemanha de 1921) não passava de um exterminador implacável, um fanático que a História não deve ignorar, correndo o risco de que, se o fizer, estará a esquecer um dos fantoches mais perigosos da civilização humana.

Farsa e ilusão, que se desmontam perante o que hoje sabemos.

“As provas encontram-se em artefactos arqueológicos, em análises de isótopos osteológicos e dentários e em estudos linguísticos. Acima de tudo, porém, elas provêm do recente campo da paleogenética. Na última década, foi possível sequenciar o genoma completo de seres humanos que viveram há dezenas de milhares de anos. A análise dos genomas ancestrais representa um conjunto de testes individuais de DNA conduzidos com indivíduos que morreram muito antes de os seres humanos inventarem a escrita, a roda ou a cerâmica. Tudo, desde a cor do cabelo e dos olhos à intolerância à lactose, pode ser descoberto com menos de 40 miligramas de osso ou dente. Os resultados revelam pistas sobre a identidade e origem dos antepassados humanos e, por conseguinte, sobre as migrações ancestrais”.

Uma minoria – os “brancos” – procurou impor-se ao resto do mundo, subjugando-o, escravizando-o, colonizando-o, estuprando-o, matando-o, humilhando-o. Assim foi durante séculos e séculos. Hoje, os mais inteligentes, sabem que o que é intercultural é muito mais positivo do que qualquer distinção que emane do multicultural. Os mais inteligentes aceitam-se, amam-se, procuram na alteridade o melhor da vida em comum. Os outros danificam o património comum, são idiotas, vândalos, marginais, assassinos, Descoloridos, em suma.

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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