De ontem e de hoje – Mister Browne por Licínia Quitério Por razões profissionais, conheci em tempos um americano típico, Mister Browne, húngaro de nascimento, a viver em Los Angeles, um homenzarrão dos seus sessenta anos, de grandes bigodes grisalhos, que me aparecia de lencinho colorido ao pescoço e não raro com um chapelão de cow-boy. Tratava-me por Maria, eu sempre lhe dizia que não era Maria e ele, imperturbável, continuava, Yes, Maria, tal como tratava todas as jovens portuguesas que, como eu, eram empregadas e tinham patrão. Visitava…
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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Mister Browne
De ontem e de hoje – Mister Browne por Licínia Quitério Por razões profissionais, conheci em tempos um americano típico, Mister Browne, húngaro de nascimento, a viver em Los Angeles, um homenzarrão dos seus sessenta anos, de grandes bigodes grisalhos, que me aparecia de lencinho colorido ao pescoço e não raro com um chapelão de cow-boy. Tratava-me por Maria, eu sempre lhe dizia que não era Maria e ele, imperturbável, continuava, Yes, Maria, tal como tratava todas as jovens portuguesas que, como eu, eram empregadas e tinham patrão. Visitava…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Ciúmes
De ontem e de hoje – Ciúmes por Licínia Quitério “Quem me dera no tempo de saltar os muros para ir roubar ameixas, ainda verdes, de fugir dos cães, dos cães que guardavam as árvores, os quintais, que ladravam e às vezes mordiam a quem trazia, a quem levava, a quem estava e não devia estar ali, no seu entender de cães.” Isto dizia ele, uma das mãos na bengala, a outra a passar o lenço pelo olhos, azulados agora, e tão incompetentes que mal guardavam a memória do…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Um casal tranquilo
De ontem e de hoje – Um casal tranquilo por Licínia Quitério Chegaram e sentaram-se, frente a frente, à mesa do café. Os filhos estão na escola, ele teve folga do serviço, ela, por agora, está desempregada. O dia está bonito, ela até estreou os óculos escuros que parecem Ray-Ban. O telemóvel dele a tocar, ele a atender “Estou sim, diz coisas, pá”. Ela tira o seu aparelho do saco e, de dedo indicador em riste, dá início à tarefa de ver os e-mails, de correr o Facebook, um…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O progresso
De ontem e de hoje – O progresso por Licínia Quitério Há muito tempo não se atrevia a subir a rua. Os anos pesam e dias há em que o peso se concentra todo nas pernas. Subir é arrastar uma massa desmedida, amálgama de lembranças e anseios e estremecimentos vários. O Sol, menino atrevido, chamou-o, com aquele calorzinho bom que afaga e promete. Ao sair a porta, disse para dentro para a companheira: – Se eu me demorar, não te preocupes. É que me apetece sentar-me um bocado no…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A infância
De ontem e de hoje – A infância por Licínia Quitério Pela janela da infância o mundo entrava. O mundo, quero dizer, o canto estridente do canário da vizinha Celeste, com um carrapito preso por ganchos de tartaruga. O bater sola, cadenciado, do Júlio sapateiro, de beata apagada ao canto da boca. O chiar do rodado do carro de bois, pachorrentos como se usa dizer dos bois. Os gritos, sobretudo os gritos dos meninos da rua que brincavam e lutavam e se insultavam, a enganar a fome da côdea…
Ler maisFolhetim por Licínia Quitério | “Dona Clotilde” – (8º. Episódio e último)
“Dona Clotilde” – (8º. Episódio e último) Licínia Quitério Já vários anos tinham decorrido desde que o acordo fora estabelecido, com honra para ambas as partes. Encontraram-se numa leitaria, longe do bairro em que habitava. Lembra-se ainda, como se fosse hoje, de todos os pormenores do encontro. Até da nova água-de-colónia que ele trazia. Um horror! Cheirava de longe a pecado. E ela coberta de pó-de-arroz, a esconder as olheiras de uma noite de insónia, nervosa como uma adolescente em encontro clandestino. Ouviu-o falar, falar, enquanto bebia um galão…
Ler maisFolhetim por Licínia Quitério | “Dona Clotilde” – (7º. Episódio)
Folhetim por Licínia Quitério “Dona Clotilde” – 7º. Episódio Só mais um impulso, bem controlado, e a carapaça voltaria a erguer-se sobre as patitas retorcidas, cambaleantes, a princípio, mas capazes de a tirar debaixo daquele tapete que ameaçava sufocá-la, antes que a curiosidade de algum gato a descobrisse e, num gesto ágil, lhe desfechasse o golpe final. Deles, nem sinal. Até ao dia em que o telefone retiniu pelas concavidades da casa, de súbito desperta. Atendeu, toda a tremer. A voz dele, num sussurro: “Quero ver-te. Precisamos falar. Eu explico…
Ler maisFolhetim por Licínia Quitério | “Dona Clotilde” – (6º. Episódio)
Folhetim por Licínia Quitério “Dona Clotilde” – 6º. Episódio Se tivesse um buraco tinha-se metido por ele abaixo. Mas calou, a fazer de conta que não era nada com ela, as mãos a tremer, ainda por cima na altura crítica de lacrar um envelope. Continuava firme nos seus princípios sobre as regras de bem viver: “Ca-da ma-ca-co no seu ga-lho!”. Silabava o aforismo, espaçadamente. Uma frase inteira sem “erres” era para ela um raro prazer de oratória que não podia dar-se ao luxo de desperdiçar. Cumpria o seu dever o…
Ler maisFolhetim por Licínia Quitério | “Dona Clotilde” – (5º. Episódio)
Folhetim por Licínia Quitério “Dona Clotilde” – 5º. Episódio Conversas sobre este assunto não eram frequentes, mas, quando aconteciam, Dona Clotilde parecia perpassada por um diabinho que vivia dentro dela, e que então se deixava avistar, num ápice, um pequenino luzeiro, no fundo dos olhos cor de mel, ao mesmo tempo que o corpo dela se contorcia, ligeira, muito ligeiramente. A vida levou uma volta, se levou. Quando os apanhou em flagrante delito, no seu próprio quarto, no seu próprio leito, num desaforo, foi como se uma bomba buum! lhe…
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