Capítulo I
Corria o ano de 1937 quando a Junta Nacional do Vinho espalhou em Portugal este cartaz que ostenta o célebre slogan “Beber vinho é dar o pão a 1 milhão de portugueses”.
A produção de vinho era um dos esteios da débil economia agrícola do país que por essa altura, tal como agora, enfrentava uma crise internacional muito grande. A vitivinicultura era essencial para os grandes proprietários e produtores de vinho que através de trabalho insano dos seus assalariados garantiam a reprodução e manutenção das relações sociais. Esses grandes industriais do vinho, membros de uma elite que a ditadura alimentou para que pudesse ter uma base de apoio social exigiam apoios estatais para colmatar a falta de exportações.
Abrir os cordões à bolsa não interessava ao ditador Salazar e por isso a forma cínica encontrada foi a de incentivar os portugueses a beberem vinho para ajudarem aqueles que viviam na miséria, assim minorando as suas parcas condições de vida.
Este tipo de políticas num país onde o alcoolismo era um dos principais problemas sociais, lembre-se como era comum as crianças e os trabalhadores ao pequeno-almoço comerem as célebres ‘sopas de cavalo cansado’ (pão regado com vinho e açúcar), não resolveu nenhum problema e conduziu Portugal a uma situação terrível de doenças do fórum intelectual e do sistema nervoso. Uma vez debilitados a tuberculose encontrou nos portugueses um terreno fértil que deixou um rasto ainda hoje visível, de santórios espalhados por todo o país. Em 1974, para uma população de cerca de 8,9 milhões de habitantes, encontravam-se cadastrados mais de 400.000 doentes alcoólicos. Os portugueses eram considerados na Europa o 2º país que mais vinho consumia: 109 litros/habitante/ano o que se pode traduzir num consumo de 10 litros de álcool/habitante/ano. Ainda hoje passados que foram quase 50 anos, a nossa sociedade convive mal com o consumo de bebidas alcoólicas.
Este foi o resultado prático da miséria pecuniária e moral, da depressão e da iliteracia social quando aproveitada pelos políticos, ao porem quem não pode a pagar as suas conveniências.
Capítulo I I
Muito se tem falado sobre o estado em que se encontra o nosso património monumental e cultural. Os sucessivos governos têm sido pródigos em mudar o nome aos organismos que o gerem atribuindo talvez ao nome os problemas crónicos de falta de dinheiro.
Tivemos a DGEMN – Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais herdada do Estado Novo e que durou até 2006. Daí para a frente tivemos o IPPAR, o IGESPAR e atualmente a DGPC – Direção-Geral do Património Cultural que em 2020 teve um orçamento de 57,6 milhões de Euros dos quais 25,4 milhões se destinaram a despesas com pessoal e apenas 10,5 milhões a investimentos.
Falo nisto porque o atual Governo tem tido dinheiro para tudo menos para a Cultura voltando a falhar o objetivo de 1% do PIB para 2021. Apertado por todos os setores culturais, e com o património monumental a desfazer-se, resolveu tirar um coelho da cartola julgando estar a fazer um brilharete:
Criar via Ministério da Cultura uma ‘raspadinha do património’. Assim, o Governo em parceria com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa irá lançar em Maio uma raspadinha cujo destino será o de financiar o Fundo de Salvaguarda do Património Cultural.
A ideia em si já existe em outros países europeus, por exemplo na Bélgica e no Reino Unido onde o financiamento das artes e da cultura via National Lottery tem sido um sucesso. Mas a situação é muito diferente do que se passa no nosso país.
Dizia a Visão a 15/02/2021:
“Em fevereiro de 2020, a um mês de a OMS declarar a pandemia de covid-19, noticiou-se uma “epidemia das raspadinhas” no país. O surto nacional espelha a dura realidade das franjas mais precárias. As raspadinhas são o vício das camadas desfavorecidas, em grande parte graças à promessa de recompensa imediata, que vende um instante de esperança aos mais desesperados.”
Os psiquiatras portugueses Daniela Vilaverde e Pedro Morgado num estudo apresentado explicavam que Portugal é o país da Europa onde se gasta mais dinheiro em raspadinhas. Em 2018 gastaram quase 1.594 milhões de euros a raspar papelinhos. Cada português gastou em média 160 euros/ano. Aqui ao lado cada espanhol ficou-se pelos 14 euros. Para ter-mos uma ideia de escala, em 2018 os portugueses entregaram voluntariamente à SCML mais do que entregaram em 2020 via os seus impostos à TAP (1,2 milhões de euros).
E para quê tudo isto: é que o Estado prevê arrecadar cerca de 5 milhões de euros para o Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, ou seja, o Governo para não abrir os cordões à bolsa em sede de Orçamento de Estado, aplica um ‘imposto’ sobre as classes mas desfavorecidas, exatamente aquelas que devido à sua iliteracia infelizmente não usufruem da visita aos monumentos e museus abrangidos pelo FSPC. E não nos iludamos. Basta olhar para as estatísticas para verificar que a maioria dos visitantes é estrangeira. É este o resultado de anos e anos de desleixo na promoção do património cultural. E cá estamos felizes e contentes, mantendo o Estado gordo e os portugueses mais desfavorecidos a emagrecerem.
Mais uma vez, tantos anos depois, vamos chegar à conclusão de que as conveniências dos nossos governantes são sempre pagas pelos bolsos dos que menos podem. O Mundo é redondo e a memória das gentes muito curta!
Mafra, 24 de Março de 2021
Mário de Sousa
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