Nota prévia:
A votação, na Assembleia da República, dos Projetos de Lei elaborados por cinco diferentes forças políticas sobre a despenalização da eutanásia foi esta quinta-feira. Escrevo a minha opinião a 18 de fevereiro, dois dias antes, desconhecendo resultados e sem qualquer capacidade de os prever.
Há várias questões que têm sido colocadas nos últimos dias, em que a eutanásia é um tema quente no foro político e na comunicação social. Faço um (grande) parêntesis antes de continuar: ouvimos a eutanásia em discussão na praça pública? Nos nossos locais de trabalho, nos transportes públicos, no restaurante onde habitualmente vamos, no quiosque onde compramos o jornal? Não. Não há espontaneidade do cidadão comum em debater este tema com os que o rodeiam e isto preocupa-me muito e deve preocupar nomeadamente todos aqueles que defendem o referendo. Os portugueses não estão despertos para a eutanásia, não estão conscientes das dimensões da vida e da morte, não estão ativamente empenhados em discutir a decisão coletiva e individual sobre quando morrer.
Não caio no argumento fácil de que os direitos humanos não são referendáveis – tanto são que referendámos o aborto e não se gerou o apocalipse, aprendemos a viver com a nova realidade, criámos as condições necessárias para tal e hoje há uma aceitação generalizada. O mesmo poderá acontecer com a eutanásia?
Primeiro, não posso deixar de notar que entre a direita mais conservadora e as igrejas há um reforço muito grande do asco ao verbo “matar”, porque matar ora é crime, ora é pecado, ignorando sempre que esta é uma visão redutora da própria vida e que matar pode, efetivamente, ser a única forma de dignificar aquela vida em particular.
A eutanásia não é uma pena de morte, a eutanásia não é uma punição e a eutanásia não pode, em nenhuma circunstância, ser a única saída. O maior argumento na defesa da eutanásia tem sido o da liberdade individual. Em debate, Adolfo Mesquita Nunes fez uma lavagem dos Projetos de Lei e diz que “eu não posso exigir que o Estado me mate em qualquer circunstância”. Pois não e ainda bem que ele o referiu. O direito à eutanásia é circunstancial. Falamos de uma liberdade individual condicionada a um conjunto de critérios que colocam o indivíduo em posição de decidir sobre a continuidade ou término da sua própria vida. Todos os Projetos de Lei abordam isto.
Quando afirmo que a eutanásia não pode ser a única saída, reforço o argumento da liberdade individual e para haver liberdade, tem de haver escolha – tem de haver alternativa. Não pode, nunca, ser aceite que a eutanásia se torne o escape para um Serviço Nacional de Saúde incapaz de oferecer tratamentos eficazes e duradouros, uma estrutura de apoio de 360º, que extravasa completamente a fronteira da cama de hospital, ou cuidados continuados adequados e acessíveis a todos.
Atualmente, 70% dos portugueses não têm acesso a cuidados paliativos. Pergunto: um indivíduo dentro destes 70%, em sofrimento profundo e sem acesso a cuidados adequados, poderá decidir de forma razoável e racional, em consciência e na plenitude dos seus direitos, sobre ser ou não eutanasiado? Um indivíduo em condições económicas precárias, sem acesso a medicação ajustada às suas necessidades, sem alimentação adequada, sem o acompanhamento profissional necessário e sem uma estrutura familiar de suporte, está em condições de decidir ser eutanasiado? Temos que pôr esta preocupação no topo das prioridades de atuação do governo e no topo das preocupações de cada um de nós. Antes de decidir sobre a morte, o governo deve atuar sobre a vida, sobre a garantia das necessidades mais essenciais e fundamentais da vida humana. Primeiro, tratar, salvar, cuidar. Depois, matar. Um país que não sabe como fazer viver em dignidade, não saberá como fazer morrer em dignidade, porque quando se fala de vida, fala-se necessariamente de morte, por mais pesada que a palavra possa ser, por mais que nos atormente a palavra matar.
Com muita preocupação e com questões fundamentais e de consciência, se hoje me encontrasse sob o véu de Rawls e me visse perante a decisão de despenalizar ou não a eutanásia, a resposta seria sim. Eu, consciente, livre, dona de mim mesma, tenho de ter o direito fundamental de decidir sobre a minha própria vida. Para além da discussão, necessária, sobre cuidados paliativos e sobre toda a esfera de consciência e de necessidades asseguradas, discute-se a possibilidade de um indivíduo condenado ao sofrimento ou que recusou continuar um tratamento (direito seu), decidir não viver mais na condição comprovadamente irreversível em que se encontra, poder decidir sobre a sua própria vida. Poder terminar, se assim desejar, em plena consciência da fatalidade e dos seus atos, de forma digna e voluntária, a sua própria vida. A SUA PRÓPRIA VIDA. A eutanásia não é decidir sobre a vida dos outros, é dar a cada um a possibilidade de decidir se quer continuar a viver naquela circunstância.
No 24º artigo da Constituição deste Estado de Direito, lê-se que “a vida humana é inviolável”. Este argumento tem sido utilizado contra a despenalização da eutanásia mas o Professor Jorge Reis Novais explicou por que é que este é um argumento a favor: porque tem por base uma vida digna, individual e em sociedade, e pressupõe o direito à autodeterminação sobre as questões mais importantes da vida de cada um. Isto implica, para quem assim o entende, a possibilidade justificada de um indivíduo controlar o momento da sua própria morte. Uma possibilidade que advém da tal liberdade individual condicionada.
É este o momento de decidir sobre a eutanásia? Julgo que não. Julgo que é precipitado, que há uma “fúria legislativa”, como referiu alguém esta semana na comunicação social, que há uma pressa perigosa em decidir sobre esta matéria, que não há condições no Serviço Nacional de Saúde para que a eutanásia seja uma prática consciente e uma alternativa real, entre outras igualmente possíveis. A eutanásia mereceria um debate real, uma discussão duradoura, cidadã, consciente e informada. Só a participação e a discussão poderiam levar à melhor decisão – e só depois da discussão eu creio que, em referendo, forma direta de expressão da vontade dos cidadãos, estaríamos, todos os portugueses, em condições de mostrar ao nosso Estado o caminho (que acredito que fosse o caminho pela eutanásia).
Pode ler (aqui) todos os artigos de Leila Alexandre
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