FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério
DESVAIRADAS GENTES (8º. Episódio)
O barbeiro era baixote, como já foi dito, mas a Elvina, quando se cruzava com ele na escada estreita, achava graça à maneira saltitante como descia os degraus. E gostava daquele cheiro fresco a “after-shave” acabado de aplicar. A bem dizer, até gostava da voz dele:
– Faça favor, vizinha, a dar-lhe prioridade na descida.
Andava um pouco irritadiça. Se o marido lho fazia notar, respingava:
– Manias tuas. Irritadiça, eu?
E ia até à janela, a procurar alguma frescura da tarde. Ele ficava a murmurar, a conformar-se:
– Mulheres! Quando estão com os sangues…é deixá-las.
De há uns tempos para cá, o barbeiro começara a vir almoçar a casa. A mulher deixava-lhe tudo arranjadinho, mesa posta, era só aquecer. Por que raio havia de comer na tasca, se trabalhava a dois passos de casa? Melhor para a saúde e para a bolsa. Um dia destes, tentou acender o bico do gás e nada.
– Os patifes fecharam o gás sem avisar. – pensou.
Experimentou o esquentador. Acendeu à primeira.
– Porra! O filho da mãe do fogão deu o berro. Agora já nada dura. Tudo uma trampa. O que é que eu faço?
Comida fria não era com ele. Mais a mais feijoada à moda da Terra. De repente, lembrou-se. Talvez a vizinha Elvina o desenrascasse. Ganhou coragem, tocou à campainha. Ela espreitou pelo ralo da porta. Nem queria acreditar. Num reflexo, compôs o avental, prendeu o cabelo atrás da nuca com um travessão em forma de borboleta que trazia no bolso e, com o coração a bater forte, abriu a porta.
Nunca seriam capazes de contar quanto tempo mediou entre o poisar do tacho sobre o fogão por acender e o beijo sôfrego de encontro à ombreira do quarto, ela sem travessão, ele com o nó da gravata desfeito.
Foi precisamente numa quinta-feira que a mulher do barbeiro voltou mais cedo da Escola. A chefe não fora ao serviço, ela precisava tanto de limpar o tecto do corredor, a porcaria das casas velhas nunca se dá conta delas, os fins de semana não chegam para nada, e a colega disse-lhe:
– Ó mulher, pira-te que ninguém vai dar por nada.
E pirou-se mesmo, com um nadinha de remorsos por, pela primeira vez em catorze anos, ter alinhado numa escapadela.
(continua)