De ontem e de hoje – O banquinho por Licínia Quitério Eu era pequena, franzina, nos meus oito anos, e o banquinho rectangular, de duas abas fixas, um buraquinho no tampo, dava um jeitão para eu chegar ao parapeito da janela e apoiar os cotovelos. Eu sabia muito pouco da vida que ainda em mim era tão curta, mas lia, sabia ler desde os quatro anos, e lia o que aparecia em casa: O Primeiro de Janeiro ao fim de semana, A República diariamente, chegada pelo correio, com o…
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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Dona Sara
De ontem e de hoje – Dona Sara por Licínia Quitério A senhora tem os rituais que os oitenta e tantos anos lhe exigem para poder abrir os dias e pensar, estou só mas estou viva, graças a Deus. Aguenta-a aquele mau génio que os outros referem quando dizem, sempre foi uma peste, e desfiam pecados passados de dona Sara. Sabem lá eles do que falam, de quem falam, só ela sabe de si, de quanto amou, quanto odiou, quanto chorou, quanto lutou para tratar dos velhos lá de…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A Aparição
A Aparição por Licínia Quitério A gente vai ali e já vem, o que tem a fazer não é coisa de levar mais de uma hora e, depois de tudo feito, senta-se um bocado a tomar um café, a cumprimentar este e aquela, a sossegar, a olhar a rua, sossegada rua de bairro sossegado de sossegada terra. Do lado de lá, envolta no sossego, a aparição de um homem velho, alto, muito magro, de barbas brancas a excederem a máscara que a pandemia trouxe. Era o que nos…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Os filhos
Os filhos por Licínia Quitério A cabeleireira tem um filho que não quer comer. Não quer comer ou não quer que a mãe queira que ele coma. Só quer o tablet que o tio lhe ofereceu para ver os bonecos tão feios, mas de que ele gosta muito. É tão engraçado ver como ele já sabe mexer naquilo com os dedinhos gordinhos a deslizarem para cá para lá e os bonecos horríveis a fazerem caretas, a gritarem. O que vale é que ele lá vai mastigando enquanto joga…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Seria mesmo ele?
Seria mesmo ele? por Licínia Quitério Há meia dúzia de anos, num transporte público, sentei-me ao acaso ao lado de um desconhecido. Puxei pela sandes de queijo e comecei a comer com avidez, porque tinha estado em jejum de obrigação. Já a sandes se aproximava do fim, quando o sujeito se inclina para mim, me toca ao de leve com o ombro e exclama, isso é que é larica, e ri-se. Afastei-me, olhei-lhe o perfil e com cara de poucos amigos disse, pois. O sujeito continuou a rir,…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O meu computador
O meu computador por Licínia Quitério Desbravar um computador, nos finais do século vinte, teve o seu quê de aventura para quem como eu aprendeu a escrever com caneta de pau, aparo de folha molhado em tinteiro de vidro, salpicos de tinta na folha de papel, no bibe e no chão. Aventura talvez comparável a ser largado de noite numa cidade grande aonde vamos pela primeira vez. Tudo o que sabemos é que ela existe, está ali à nossa volta, mas não sabemos por onde seguir, nem o…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – No Tem-Tudo
No Tem-Tudo por Licínia Quitério – Traz lugar? Pergunta o homúnculo por detrás do balcão, por debaixo dos capachos e dos mata-moscas pendentes do tecto, entalado entre os grandes frascos de rebuçados e a pirâmide multicolor dos alguidares de plástico. Ao silêncio de incompreensão do cliente, repete, aparentemente agastado: – Traz lugar ou precisa de um saco? É que temos poucos. Assim se fala na Drogaria Moderna, de João Cipriano (Herd.os), Lda, mais conhecida no bairro pelo Tem-Tudo. Fica numa dobra de velha Calçada de Lisboa, sinuosa como…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Peixe fresco
Peixe fresco por Licínia Quitério Claudino assomou ao patamar dos degraus de mármore que davam acesso ao piso inferior. Havia um número considerável de fregueses na zona do peixe fresco. Um vozear de mulherio percorrendo as bancadas, avaliando tamanhos, preços, grau de frescura. Pareciam muito zangadas as mulheres. Não encontravam o que queriam e já iam na segunda volta. Poucos os homens, calados, dando só uma volta. Os vendedores gritavam, uns para os outros, com vozeirões de sotaque de mar, arrastado. O chefe dos vendedores distribuia ordens a…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Guimarães
Guimarães por Licínia Quitério Quando há poucos anos estive mais uma vez em Guimarães, veio-me à lembrança a visita que ali fiz com os meus pais, no tempo em que eu era uma jovem rapariga com a curiosidade pelo mundo a crescer dentro de mim. À vista de novas terras, os meus olhos arregalavam-se e os ouvidos ficavam alerta para outros falares. Ali ia eu de novo, muitos anos volvidos, no comboio que me levava pelo vale do Ave, lindíssimo de verdes e de águas e de sombras,…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O Cão
O Cão por Licínia Quitério Morreu, o cão. Nos seus anos de ser cão, quase duas décadas deviam ter passado. Agora a dona não traz as duas voltas da trela acrescentadas às pulseiras várias e coloridas. Tem mais simetria no andar, mais disponibilidade do braço para ajeitar com elegância o chapéu que faz mudar com as estações do ano. Os olhos, escandalosamente azuis, não dizem dos seus anos de dona. Na falta do velho cão que lhe alentava o passo, adianta-se ainda mais ao dono que envelhece largamente…
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