De ontem e de hoje – Mercados por Licínia Quitério Agora que o Mercado Municipal de Mafra foi renovado, ao gosto dos modernos mercados por esse país fora, agora que já pouca gente lhe chama “Praça”, lembrei-me de deixar aqui excertos de um texto que escrevi há muito. Para memória futura, das gentes, das falas, desse ontem com outro sabor, outro ritmo: NA PRAÇA Vai-se à praça dar uma espreitadela. Da entrada, abarca-se com o olhar os tabuleiros mais distantes, semi-cerrando o olhar, aconchegando o casaco a afastar…
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Crónica de Licínia Quitério | A ouvidora
De ontem e de hoje – A ouvidora por Licínia Quitério Devo ser uma boa ouvidora, já que amiúde me procuram pessoas para que eu as oiça. Chegam e ficam, durante horas, a falar, a contarem-me histórias, verdadeiras ou inventadas, tristes ou alegres, vulgares ou inverosímeis. Vidas que parecem banais, lineares, que no desfiar da voz se desenrolam, se desdobram, se alimentam, se excedem, se sossegam. Não sei quantas histórias já ouvi, quantos relatos de amores, de dores, de perdas, de carências, de desditas, também de comicidades, de…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | O lenço
De ontem e de hoje – O lenço por Licínia Quitério Trazia um jornal desportivo dobrado debaixo do braço. Baixote, franzino, poderia parecer mais novo, não fora aquele desalento nos cantos da boca que o bigode grisalho não lograva esconder. Teve dificuldade em fazer rodar o manípulo da porta do café, o que indiciava não ser frequentador habitual. Com olhar rápido, avaliou qual das mesas disponíveis lhe seria mais conveniente. Escolheu a do canto, longe da entrada e do balcão. Mal ele se sentou, a D. Mimi, sempre…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | O Conde Drácula
De ontem e de hoje – O Conde Drácula por Licínia Quitério Ouvir falar da Roménia, dos Cárpatos, dos seus castelos, logo me faz vir à lembrança o nome de Bram Stoker, o escritor que deu vida à sua assustadora e sedutora criatura, o conde Drácula, vampiro insaciável de sangue humano, nas noites fabulosas do seu castelo. Drácula veio povoar os primeiros sonhos góticos de uma geração muito marcada pela rigidez dos costumes vitorianos, permitindo inclusivamente alusões à sexualidade proibida e perseguida. Lembro-me de ir ver, com o…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | O cachimbo
De ontem e de hoje – O cachimbo por Licínia Quitério – Mas é igual ao outro. Credo! Até me assustei. Só me faltava dar de caras com um fantasma. – Parecidíssimo, de facto. Um pouco mais alto, talvez. E com o cachimbo no canto da boca. O outro não fumava. – Há quanto tempo ela enviuvou? – Dois anos, três. – O tempo passa sem darmos por isso. – O desgosto dela, lembras-te? Não conseguia encarar a casa sem ele. Falava em ir para um convento. –…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Passagem de ano
De ontem e de hoje – Passagem de ano por Licínia Quitério A mulher sentiu-se incomodada pelo ruído da sala de festa, afastou-se discretamente e foi até à varanda. A noite estava fria, húmida, serena. Iluminações festivas nas ruas ao longe. Ali na azinhaga, nome a denunciar caminho sem pergaminhos de rua, luzes só as das janelas, a alegrarem encontros festivos, a teimosia de manter o que se chama tradição, de enganar o tempo, de desejar recomeços. Não tardaria aí o minuto de comer as passas, adoçadas com…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Não há terra como esta
De ontem e de hoje – Não há terra como esta por Licínia Quitério Lúcio gosta da sua terra como da sua mulher. Fala dela como de coisa recebida por graça divina. Minha rica terra, há lá terra como esta, onde é que já se viu um castelo como o nosso. Não vi, nem preciso ver, diz arrevesado para quem tenta contrapor-lhe o gosto com outro gosto. Que mania de dizerem mal do que é nosso, o meu país é o meu país, e esta terra é a…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Falar sozinho
De ontem e de hoje – Falar sozinho por Licínia Quitério Fala muito sozinho, em casa, sem que ninguém o oiça, só o King, cão de raça, cão bonito, fiel como se diz de um cão ou de um criado, sempre obediente às ordens, vem cá King, vai King, quieto King, senta King, deita King, muito mais obediente do que qualquer criado, útil, com aquele olhar de eterno mendigo, só mesmo o King para lhe ouvir os disparates e não os contar a ninguém. Que pode um homem…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Que linda falua
De ontem e de hoje – Que linda falua por Licínia Quitério Era assim a cantilena das meninas, no pátio da escola : ”Que linda falua que lá vem, lá vem, é uma falua que vem de Belém. Eu peço ao Senhor Barqueiro que me deixe passar, tenho filhos pequeninos não os posso sustentar. Passará, não passará, algum deles ficará, se não for a mãe à frente, é o filho lá de trás.” O barqueiro ia decidindo a sorte desta e daquela e da outra, com o dedo…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | A pergunta
De ontem e de hoje – A pergunta por Licínia Quitério A cozinha tinha uma porta que dava para o quintal, e na porta havia um postigo, um quadro de quatro vidros. Naquele tempo, havia muitas moscas que poisavam e caminhavam nos vidros, vagarosas. De tarde, eu observava as moscas que não faltavam ao seu passeio ao Sol, nos vidros virados ao Sul. Chegava-me mais à porta até elas debandarem. Deixavam marcas redondinhas, pequeninas, nos vidros, que limpava com os dedos, quando a mãe não estava a olhar.…
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