Crónicas de Jorge C Ferreira | Um beijo para Marielle

Um beijo para Marielle

Chegar ao Rio num voo de ilusão. Procurar Marielle. Procurar a Liberdade. Procurar as mulheres de todas as cores e de todas as alegrias. Procurar o Arco-Íris. Procurar Marielle.

Encontrar rostos com vontades escritas. A valentia tatuada em cada corpo. Os corpos abertos e despertos. Milhares de “Marielles” a ocuparem as ruas que lhes querem negar.

O Rio de Janeiro. A cidade única. Chegar ao Corcovado olhar para o imenso e não ser capaz de conter as lágrimas. Porque o belo desarma todas as defesas, faz-nos como somos. Livres nos pensamentos e nas emoções. A lágrima livre. As veias da liberdade. Um sangue diferente.

Procurar Marielle. Subir à favela. Transgredir. Arriscar. Ter medo. Ter medo dos bandidos e da polícia, do exército. A corrupção. Os “comandos”. Sentir que uma ditadura militar tenta cavalgar o poder. Não recuar.

O Rio de Janeiro. Aquele acidente de terra entre a Baía e a montanha. Uma tira de beleza. Uma mulata e um samba. O choro dos negros. A chinela no pé. Ver os favelados a virem para as ruas de baixo. Sentir o movimento. A Lagoa, Santa Teresa e um bondinho.

Procurar Marielle. Em Marielle procurar todas as que foram Mães adolescentes. Todas as que deram a volta à vida e não esqueceram as origens. Todas as que acharam o seu caminho e não tiveram receio em o percorrer. Apesar de saberem do risco. Apesar de saberem que eles não costumam perdoar a inteireza das pessoas. O custo da verticalidade.

Sobrevoar o Rio de Janeiro. Um frágil helicóptero que parte do Pão de Açúcar. Ver a maravilha toda lá do alto. Ir até à barra e regressar à beira-mar. Uma visão que nos tolda os sentimentos. Vemos e não achamos possível. Quem fez isto? Onde estamos?

Chamar por Marielle. Chamar por todas os direitos que nos querem sonegar. Ver em Marielle uma luz que indica o caminho. A força inventada para superar as dificuldades. Avançar sempre no caminho da tolerância e da igualdade. Uma  força a crescer. Uma alegria de viver.

O Rio de Janeiro. A Pedra da Gávea. Ser tentado a fazer um  voo de asa delta. Sentir a liberdade. Deixar-se invadir por uma imensidão de sentimentos. Voar, voar, voar. O vento a abraçar-nos. Umas asas imensas. Tudo suspenso. Outro modo de abraçar o belo. Aterrar e só voltar ao real muito tempo depois. Dizem que é tudo tão intenso!

Marielle. Continuar a chamar por Marielle. Continuar a lutar pelos direitos sociais. Pelo direito a uma vida digna. Pelo direito à diferença. Pela abertura das mentes. Contra o avanço da seitas. Contra o cerceamento das liberdades. Contra os sinais de uma ditadura em marcha.

O Rio de Janeiro. Atravessar uma rua e mudar de vida. Passar do ordenado e gradeado a um conglomerado multicolor e  desalinhado. As casas encavalitadas, ferros espetados que querem abraçar o céu. Vem-me à memória a “Cidade de Deus” e os meninos bandidos. Sinto um calafrio. Rio de Janeiro, uma dicotomia que fascina e aterra. Amar-te é uma pulsão.

Marielle continua viva nas vozes e nos corpos de todos os que estão a sair à rua para a saudarem e nela saudarem a liberdade. Os cobardes assassinos e os seus mandantes estão mortos aos olhos de quem diz não aos opressores. Marielle, estou sempre a encontrar-te em cada esquina. Um beijo.

«Custou-me tanto a morte dessa menina. Era do meu povo, da minha coragem. Precisamos tanto de gente assim.»

Voz de Isaurinda.

«Essa tua menina está viva na voz de muita gente. O caminho que ela iniciou vai continuar. Há gente que não morre.»

Respondo.

«Tá bem, mas custa muito. Tenho pena. Choro.»

De novo Isaurinda e vai, o pano a limpar uma subversiva lágrima.

Jorge C Ferreira Mar/2018(163)

 

 

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26 Thoughts to “Crónicas de Jorge C Ferreira | Um beijo para Marielle”

  1. maria fernanda morais aires gonçalves

    De Drumond “A flor e a náusea” (parte do poema), Marielle merece e porque a história se repete<:
    " As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. Um flor nasceu na rua! Vomitar esse tédio sobre a cidade. Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado. Nenhuma carta escrita nem recebida. Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres mas levam jornais E soletram o mundo, sabendo que o perdem. Crimes da terra, como perdoá-los?"
    E assim o poema continua e Marielle ouve-o, parece escrito para ela.

    "Uma flor ainda desbotada
    ilude a polícia, rompe o asfalto.
    Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
    garanto que uma flor nasceu."

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Tão belo. Que bom é ter-te como leitora. Abraço-te

  2. Fernanda Luís

    “Para não dizer que não falei das flores”.
    A matança no Brasil continua mas a LUTA também. Marielle não morreu em vão.
    “ vem vamos embora que esperar não é saber”.
    Gostei muito.
    Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Falar de tudo e não esquecer as flores. Abraço

  3. Célia M Cavaco

    O mundo pula e avança…Foi a Marielle no outro lado do atlântico onde dizem que Deus deixou a imagem do paraíso.Haverá muitas mais Marielles se deixarmos que os maus avancem com o medo que se instalará dentro de nós.A esperança de mãos dadas com todas as outras Marielles que surgirão em muitas outras “Favelas” será com certeza um abraço de todos nós que acreditamos,queremos acreditar, que apesar de tudo,o mundo pula e avança com muitas guerreiras dizendo,Chega! Basta! Somos Mães do futuro onde queremos ter filhos em democracia e igualdade de cor neste mundo que apesar de tudo…poderá ser uma caixa de lápis de cor nas mãos de todas as crianças…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Temos de dar a bolta ao mundo, à vida. Abraço

  4. Isabel Baião

    Uma maravilhosa homenagem a Mireille. Nunca será esquecida. Símbolo da liberdade, lutando pelo direito dos oprimidos. Muitas mais farão ouvir suas vozes. Muito já foi dito. Obrigada por este brilhante texto que não me canso de ler.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Vamos continuar o caminho de Marielle. Abraço

  5. Ana Pais

    Marielle será sempre recordada no Rio de Janeiro e no Mundo. Acreditava na justiça e nos direitos das mulheres e dos homens mais desfavorecidos. Será sempre uma Heroína de um país de grandes desigualdades. Choraremos sempre pela Marielle e acreditaremos num Brasil democrático. Obrigada, mestre Jorge por dar a Voz à Liberdade, sempre.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ana, choraremos e gritaremos com ela, pela justiça, pela liberdade, contra a hipocrisia. Abraço

  6. Isabel Pires

    Há gente que não morre Marielle.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Há gente que nós temos obrigação de continuar. Uma tarefa sem fim. Abraço

  7. Cristina Ferreira

    Marielle, a tua execução jamais calará a tua voz. Continuaremos a gritar-te. Não deixaremos que te calem nunca.
    Jorge, querido amigo, obrigada por mais este grito.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Sim, vamos continuar a o grito de Marielle. Não iremos calar. Abraço

  8. Regina Conde

    A voz que denunciava sem medo as violações de mulheres e homens. Acreditava que mudar é possível. As balas tinham o nome de Marielle. Mulher e símbolo que nunca devemos esquecer. Como nos falas desta Mulher vida. Não desanimar por muito que custe dizer Mirielle e não chorar. Obrigada Jorge. Também tu és força.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Vamos continuar Marielle. Vamos ser coragem. Abraço.

  9. Maria da Conceição Martins

    Não devemos deixar que a Marielle caia no esquecimento. Ela era a voz dos que não a têm ,mas mexeu com os poderes instalados e os «coroneis» não perdoam.
    Brasil para onde caminhas?
    Até para a semana Jorge. Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria da Conceição. Não, não iremos deixar. Vamos continuar a sua vontade. Abraço

  10. Esmeralda Machado

    Gostei muito da sua crónica.
    Marielle , uma mulher lutadora, uma heroína.
    Haverá mais “Marielles”
    Marielle não morre. Estou consigo neste momento, choro consigo. Um abraço amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Esmeralda. Salbar a coragem. Lutar. Abraço.

  11. Ivone Teles

    Quem pode esquecer Marielle ? O Rio de Janeiro tem tanto de belo, como de perigoso. As diferenças são abissais e os antigos ” coroneis ” continuam com o seu poder sobre os mais necessitados. Nas Favelas convivem trabalhadores com bandidos, é certo. Mas é procurando a igualdade das ” gentes que se pode lutar para o que está, mal. Marielle era uma lutadora. Mulher, negra, guerreira pela justiça, lésbica, era para a polícia um alvo a abater. E a polícia militar é constituída por bandidos piores que traficantes. Há mães que nunca encontram, nem mortos, os seus filhos adolescentes. Marielle, quer lutar pela mudança. Quer lutar por um país melhor, democrático. Um alvo que foi abatido com tiros que lhe destruiram a cabeça, a face. Mas o sorriso de Marielle ficou. Não há nada, nem ninguém, que o possa apagar. Eu nunca esquecerei. Tocou-me demasiado. Estou contigo, meu amigo, e choro contigo e com a Isaurinda. Mireille será mais um símbolo a unir-nos. Mireille ainda há-de ficar na história do Brasil. Beijo amigo, Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Como sempre dizes o que vai dentro de nós e tão bem o fazes. É tão bom ler-te! Abraço

  12. Idalina Pereira

    Ao ler esta crónica lembrei-me de “Felizmente há Luar” …veio à memória a saia verde…
    Esta mulher será recordada. Não vai “cair” no esquecimento.
    Vamos “vestir” a saia verde…
    “Felizmente há Luar”!
    Obrigada por mais este GRITO.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Idalina. Que bela memória. Que honra. Vamos continuar Marielle. Abraço

  13. Idalina Pereira

    Ao ler esta crónica lembrei-me de “Felizmente há Luar” …veio à memória a saia verde…
    Esta mulher será recirdada. Não vai “cair” no esquecimento.
    Vamos “vestir” a saia verde…
    “Felizmente há Luar”!
    Obrigada por mais este GRITO.

    1. Jorge C Ferreira

      Já comentado.

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