Aprendizagens
A sabedoria, os sabores, os caminhos, o que não se esquece, o que se cola ao nosso viver. Como sabe bem aprender. Aprender a vida, num carrossel muito antigo. Tudo a andar à volta. A girafa com o seu enorme pescoço, um cavalo com brilhantes e crina colorida, um burro que tudo carrega e outros desassossegos. Tanta gente a andar à roda num burburinho que a música abafa. Ouve-se e não se percebe. Um desafio constante. O querer conseguir.
A fantasia, os sabores inventados, a vida de brincar. Um arco e um gancho, um carro de rodas de esferas, uma tábua ensaboada. Descer a calçada, a rua, as escadas. Chegar ao fim de tudo como se tudo estivesse naquela meta sem bandeira de xadrez. As metas de toda uma invenção. Um largo, um jardim, a brincadeira toda. Tudo saído de cabeças criativas. A invencível invenção. O querer chegar.
Uma nova coreografia. Os novos passos para outra sabedoria. A bata branca, a pasta de cartão, o lápis, o afia, a caneta de madeira e o aparo, o livro das letras grandes. Saber ler. Os cadernos de duas linhas. A lousa e a pena. A escrita. As carteiras, o tampo de levantar e baixar, o refúgio dos bonecos da bola. O tinteiro, o borrão e o mata-borrão. Os números e o aprender a contar. O papel quadriculado. A borracha. O querer aprender.
A disciplina, a hierarquia. O professor, o mestre. O respeito. A secretária num estrado. O lugar mais alto, o que ficava mais perto do crucifixo e da foto do ditador. A menina dos cinco olhos, o ponteiro, o quadro negro. O pó do giz. O apagador. As palmatoadas. Conter o choro. Comer e calar. A Tia. O colo amigo. A amiga de todos e que todos respeitavam. O recreio e as correrias sem sentido. Os jogos de rua. Aprender a sobreviver.
Os exames. Os nervos, as dores de barriga. Ter de fazer bem. Uma obrigação de quem vem de famílias com pouco dinheiro. As mãos a tremerem. Um gatafunho inadvertido e um pingo de suor. A cara vermelha. Saber ler, escrever e contar. Saber fazer todas as contas, a prova dos nove, a prova real. Esperar as classificações. De zero a vinte, quantos? A alegria das boas notas. A alegria da família. Aprender a ser avaliado.
Todo um ciclo de aprendizagem. Os colegas que iam trabalhar depois da escola. Os trabalhos eram feitos depois. No dia seguinte o ditador e o Cristo crucificado estavam à nossa espera na parede branca da sala de aula. Em cima da secretária do professor, a malvada dos olhos a mais. A folha de papel almaço era a folha dos escritos especiais. Aprender a conciliar o estudo e o trabalho.
A falsa geografia. Um mapa em que Portugal era maior que o resto da Europa. Um mapa em que as chamadas “Províncias Ultramarinas” eram coladas a este nosso pequeno rectângulo. “Um País onde o sol nunca se punha”. A nossa eterna mania das grandezas. A falta de senso. O sem sentido. O aprender a filtrar a informação.
Assim foram estes tempos. Tempo que passámos. Tempos de aprender. Tempos de todos os jogos e correrias. Tempos que nos marcaram.
«Olha que tu, segundo dizia a tua Mãe, até foste bom aluno e olha que as palmatoadas só te fizeram bem.»
Voz da Isaurinda.
«Que grande amiga me saíste! Sabes que, ainda hoje, lembro e agradeço aos primeiros Mestres. Olha que as palmatoadas doíam.»
Respondo.
«Devias ser fresco, devias. Olha só se perderam as que caíram no chão.»
De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.
Jorge C Ferreira Setembro/2018(181)
Só faltou: mais uma corrida,mais uma viagem ……
Atrevo-‘me a falar no plural:
Foi viagem para a nossa geração!
Um comboio apinhado de cabeças encaracoladas….cheias de rios ,afluentes planices e planaltos ,mapas mudos ,com riscos e pontos era a cultura geral acompanhada da tal “menina de 5 olhos”.
E o comboio andou …..parando em todos os apeadeiros e estações, hoje , ainda está o banco, onde muitos se encontram e juntam todos esses retalhos ,essa manta que nos aquece.
Parabéns pelo escrito.
Obrigado Hermínia. Tanta coisa que falta! Só fiz um simples retrato “à la minute” dum período da vida. Abraço
Lembro-me tão bem destes tempos e de como foi árduo o nosso aprender! Apesar de tudo estamos vivos e gratos aos nossos mestres. Grande texto! Obrigada, Jorge. Um beijinho
Obrigado Madalena. O caminho, as carteiras, as cópias e os ditados. A nossa primeira descoberta. Abraço
Mais uma semana que se inicia com esta excelente crónica de memórias.
Regressei também à Primária. As letras, os números, as tabuadas, as contas de “mais, menos, vezes e dividir”. Também havia uma menina de cinco olhos. Se bem me lembro, só a “experimentei”uma vez.
As brincadeiras nos intervalos… levantar quando entrava algum adulto na sala…
Tanto para recordar…boas memórias (as más foram esquecidas). Obrigada uma vez mais, amigo e Mestre.
Obrigado Idalina. As notas batas brancas. As letras grandes. Tanta coisa. Abraço
Como eu gostei deste texto hoje. Também me levou de volta às minhas memórias da escola primária. E apesar de tudo ser muito diferente de hoje e ainda bem,guardo boas recordações da primária. Até para a semana amigo Jorge. Abraço e obrigada.
Obrigado Maria da Conceição. As diferenças das escolas, tão bom. Abraço
Com um problema no portátil, vim espreitar-te ao fixo. Que belo texto, querido Jorge, meu amigo, meu irmão. Voltei tantos anos para trás. Tal qual dizes foi o nosso crescimento. As memórias levaram-me até aos tempos de menina. Só não andei nos carros de rolamentos, ou ensebado. Mas víamos os amigos a descerem a rua como automobilistas numa prova. Imaginei-te como devias ser endiabrado, mas meigo e ternurento. Na escola aprendemos as letras, as contas e a levar um ” tabefe” de vez em quando, mas não doía. Pequenas e leves ” chamadas de atenção “. Hoje escreveria ainda mais, mas qq coisa fez parar o portátil. Meu querido amigo/irmão se não aparecer pelo FB é porque fiquei impedida. Beijinhos muito amigos.
Obrigado Ivone. Que bom saber o que fomos. Que bom aprender. Vamos passando pela vida com uma rapidez que incomoda. Abraço
Maravilhoso! Foram assim os tempos de aprendizagem que vivemos. As boas e menos boas recordações da nossa infância. A alegria de ficar sempre ao lado das professoras da prímária nas fotografias de fim de ano. Foram duasprofessoras, a D. Virgínia e a D. Clotide. E eu sempre muito compenetrda do meu papel. Um grande laço no cabelo apanhado ao lado. Das reguadas não me queixo foi só uma já na 4ª. classe, por causa de um problema. Sempre o gosto em aprender, foi o que mais me marcou ao longo de toda a minha vida escolar . Mesmo na faculdade, mais tarde. Não esqueço, neste caso, as minhas Mestres. E se as tive boas! Muito orgulho e admiração por quem me ensinava. E pensava: quando for grande, quero ser assim….foi o que a vida me reservou de melhor. A seguir aos filhos, claro.
Obrigado Ana Bela. Aprender, aprender, apender. Aprender sempre. Lembrar os Mestres. Abraço
Que bela crónica! Uma descrição tão perfeita e clara que parece que voltei à minha infância. Lembro-me de tudo isso, o que mais me incomodava era decorar rios, serras etc.
Vivia nos Açores, nunca tinha visto um rio e tanta coisa mais.
Muito obrigada amigo
Obrigado Esmeralda. Lembrar um tempo e falar com os netos do futuro. Continuar a aprender. Abraço
Com excepção do carro de roda de esferas e a menina de cinco olhos, vivi tudo. É como se vestisse cada palavra. Levaste-me a visitar cada aprendizagem. Os nossos olhos ficavam tão grandes perante o comer e calar. Correndo o risco de me repetir o texto é de uma beleza emocionante. Ai que linda Isaurinda, as expressões que conheço tão bem. Tão querida essa figura imaginária. Um abraço e muito obrigada por me levares ao passado.
Obrigado Regina. Uma viagem ao outro tempo, de vez em quando, não faz mal. O resto é futuro escrito de outro modo. Abraço
Querido Jorge, gostei muito. Sei que aprendo sempre que te leio. Por isso aguardo com o mesmo entusiasmo de sempre a chegada das tuas belíssimas crónicas.
Foste um bom aluno e és um excelente mestre.
A Isaurinda fez-me rir, ao dizer que devias ser fresco. Imagino-te, com todo o carinho..
E fez-me lembrar uma conversa que tive há pouco tempo com a minha professora da primaria (com quem ainda privo com amizade e enorme respeito).
A ela agradeço, assim como agradeço as várias pessoas que me marcaram ao longo da vida.
A ti, fui tomando a liberdade de ao longo do tempo te chamar de “mestre” – meu mestre! Assim te vejo, querido amigo Jorge, assim te sinto. As tuas palavras. A tua sabedoria, A tua delicadeza. A tua magia. A tua postura de vida é para mim um exemplo. Uma inspiração.
Agradeço com toda a admiração e ternura tudo o que me/nos dás.
Bem hajas
Obrigado Cristina. Sempre generosa. Tão bom, ainda ter contacto com os nossos mestres. Mantém sempre essa ligação. Abraço
Que memórias meu amigo,fizeram-me recuar à procura de recordações minhas.Há uma ténue separação de tempo e lugar,talvez os verbos sejam iguais,mas…aquelas réguadas por causa da cantilena…2×1,2×2,2×3. Ainda hoje sinto as ditas réguadas sem dó nem piedade na palma da minha mão.Aquele abraço meu muito amigo
Obrigado Célia. As tuas reguadas. A música da tabuada. Os números a crescerem. A magia de juntar as letras. Abraço