Crónica de Mário de Sousa | Hopper

 

Crónica de Mário de Sousa
Hopper

 

No Verão de 1983, terminei um estágio de programação de computadores em St. Neots, pequena vila de Cambridgeshire. Precisava de um alojamento em Londres para onde iria, e um amigo indicou-me uma residencial em Padington que praticava preços muito acessíveis. Deu-me como referência um tal Brigs, amigo de longa data. Apanhei o comboio para Londres. Cheguei a Victoria Station já o sol se escondia por detrás dos telhados. Brigs recebeu-me com alguma contenção mas disponível para me alojar o melhor e mais barato possível. A minha estadia não iria além dos quatro meses, tempo necessário para um novo curso de programação.

Foi ao pequeno-almoço que conheci Vic, inglesa morena de cabelo aloirado e olhos de amêndoa, denunciando uma ascendência latina. Era uma força da natureza. Tudo à sua volta esvoaçava e ninguém ficava indiferente à sua vivacidade. Embora mulher naqueles idos de 80 do século passado, não havia contestação à sua liderança no põe e tira mesas, no serve arenque e retira prato.

Não foi difícil estabelecermos amizade. Pela sua mão, às sextas-feiras à noite aprendi o caminho do Hammersmith Ballroom onde aconteciam os mais badalados bailes de Londres. Por lá ficávamos dançando e bebendo cerveja até que, por volta das onze da noite, a orquestra em grande estilo, encerrava o baile tocando ‘Viva la España’. Regressavamos então para Padington, cansados mas felizes e, se a cerveja ainda nos dava algum calor, cantávamos a Rule Britannia tal e qual estivéssemos numa proms do Royal Albert Hall.

Num domingo depois do almoço, Vic lembrou-se de ter visto no metro o anúncio de uma mostra temporária de um pintor americano, comemorativa dos quinze anos da sua morte. Uma hora depois, estávamos na Tate Gallery. Na fachada um cartaz gritava: ‘The Edward Hopper’s America’. Dois autorretratos do pintor flanqueavam a porta.

Entrados… foi um deslumbramento. De quadro em quadro percorremos a América naquilo que ela tem de mais americano: estradas, comboios, quartos de hotel, estações de gasolina, cafés, cidades febris desmentidas pela sonolência das ruas e esquinas vazias. E mulheres, mulheres vulgares que Hopper foi fazendo envelhecer consigo, e todas elas anódinas, mas impositivas. Era tudo novo para nós e por isso deixámos escorrer o tempo por entre as mãos num embevecimento total.

Na última sala, três quadros (ainda recordo os nomes): Nighthawks, Summertime e Tables for Ladies. Foi um arrepio. Sentámo-nos num banco corrido e ficámos a contemplar aquelas três maravilhas, absorvidos pela luz difusa que emanavam. Os olhos dos retratados de Hopper impressionavam pelo seu vazio estranho e sensação de morte que transmitiam, mas em simultâneo tão vivos e tão presentes.
E nós ali como espectadores, a tentar prolongar virtualmente o espaço daquelas imagens até ao nosso próprio espaço, transformando-nos em elementos deles próprios, e eles, ao mesmo tempo, a excluírem-nos, obrigando a que ficássemos de fora. Hopper tinha conseguido fazer do nosso olhar, o tema das suas tintas. Era a nossa imaginação a pintar de forma vertiginosa sobre aquele traço difuso de cores empasteladas, mas de fronteiras tão vincadas.

Não sei quanto tempo passou, mas de repente a mulher de Summertime começou a caminhar na nossa direção e eu senti uma voz saída não sei de onde, a dizer: – I’m so sorry my dears, but it’s time to close. A tarde tinha-se esvaído num sopro.

Saímos da Tate calados, inundados por todas aquelas imagens. Vic por fim quebrou o silêncio: Temos de voltar, tem que ser! E voltámos várias vezes até ficarmos a conhecer cor por cor, traço por traço, todos os quadros da exposição.

No Natal desse ano recebi da Vic um postal de Boas Festas. Na parte da frente uma pintura com a seguinte legenda: ‘Summer interior’ Edward Hopper, 1909 – Oil on canvas.

—————————————————————————————————-

Pouco tempo depois, Vic trocou Inglaterra pela Nova Zelândia. Por lá casou e hoje, sexagenária, vive com o marido numa pequena localidade perto de Christchurch.. Falamos pouco, mas conto este ano receber pelo Natal a minha 48ª obra de Edward Hopper num postal de Boas Festas. Há paixões que perduram por toda uma vida.

A obra representada é ‘Summertime’ Edward Hopper, 1943

Mafra, 31 de Março de 2022

Partilhe o Artigo

Leia também