Crónica de Licínia Quitério | Vou ali e já volto

 

De ontem e de hoje – Vou ali e já volto
por Licínia Quitério

 

 

Ai a minha cabeça, ai a minha cabeça, é o que oiço em voz de mulher quase gritada vinda de um assento atrás do meu. Imagino-a ao telefone com alguém lá de casa que lhe diz, para sua grande  aflição, que não apagou o gás do fogão, ou que deixou o gato fechado no roupeiro, ou se esqueceu da sogra no supermercado. Isto imagino eu porque de facto nada sei de toda aquela gente que se apeia ou que entra e se senta, se houver lugar, ou fica de pé, aguentando solavancos e calores condicionados. Sou levada a concluir que o rapaz de cabelo em repuxo deseja que morra já ali a mulher volumosa que insistiu em ocupar o lugar onde ele poisava a mala grande e pesada. Levou-a ao colo, pois, o resto da viagem, que a mulher de voz forte e corpo redondo assim mandou. Há outros rapazes e raparigas com mais ou menos fios ligados aos ouvidos, à cintura, às mãos, que arrumo numa qualquer história batida de seres extraterrestres, quiçá extragaláctico, a espiarem, sempre a espiarem, que é isso que fazem todos os visitantes vindos do longe muito longe. Na diversidade de passageiros, tem de haver um árabe que entre com uma terrina nos braços ou uma mulher velada com uma galinha morta dentro de um saco de palha. Fico a imaginar a cena, mas quem aparece na paragem seguinte é um vulgar ser terrestre, vestido de luto carregado alegrado com fitas e caricas coloridas. Tem na mão uma pandeireta pequena que tilinta muito levemente corredor fora, agarra aqui, agarra ali, a aguentar o corpo na vertical, não vá acontecer uma travagem brusca. E há mais e mais e tanto que vou exercitando a imaginação, a atenção presa nos passageiros que sobem, que descem, enquanto eu continuo, o corpo embalado, uma sonolência a invadir-me, a atiçar histórias desvairadas de gente que entra, que sai, que vai ajudando a compor a minha própria história.

No final da curta viagem, desaguamos num cais de pressas e sujidades, igual a todos os cais deste mundo, onde se misturam respirações várias, alimento de muitos filmes, muitos livros, muita ficção sobre o real ou irreal de que se fazem as viagens, mesmo as interurbanas como esta de vou ali e já volto.

Licínia Quitério

 


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados oito livros de poesia – A decadência das falésias; Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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