Crónica de Licínia Quitério | Uma lista

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje |Uma lista

por Licínia Quitério

 

Uma lista, como se fosse de compras a fazer, de acções a empreender, de pessoas a convidar, de livros a ler. Uma lista, um enunciado de memórias, de intenções, de projectos, a relembrar passados, a assegurar futuros. Foi a pensar nisto que me lembrei de aqui trazer uma lista de actividades, objectos e expressões verbais de um tempo longe que me coube e que deixaram de ser usados, porque o mundo vai mudando e com ele as necessidades, os usos e costumes e as falas também. E de tal modo vem mudando que muito do que venho citar não faz obviamente parte dos saberes e dizeres da gente nova, a não ser dos rapazes e raparigas que se dediquem a estudos etnográficos, antropológicos e tantos outros que lhes digam da história dos que viveram um tempo antigo. E depois do relambório, aqui vai:

— fazer recados

Ir buscar e trazer o que quer que fosse a mando de alguém. Trabalhos das crianças da casa ou de miúdos menos afortunados, na mira de pequena dádiva.

— uma quarta de farinha

Lembremos reminiscências do tempo antes da adopção do sistema métrico decimal.

— rebuçados de tostão

Os que se pagavam com a moeda escura, mais pequena e mais pobre, afirmado na expressão depreciativa “não vale um tostão”.

— “duzentachinquenta” de farinha

“duzentas e cinquenta gramas”, no dizer popular, bem entendível, no bom uso da regra gramatical do menor esforço.

— a vasilha do leite

Recipiente cilíndrico de alumínio, com tampa e pega em aro, para transportar a porção de leite diário. De um dia para o outro, antes da pasteurização, mesmo fervido, o leite azedava.

— um metro de pano cru

Tecido claro, grosseiro, para forros ou obras menores de costura.

— um carro de linhas de alinhavar

Para costurar um tecido, alinhavava-se o desenho com linha mais barata e mais fraca, a não aconselhar segunda utilização.

— álcool desnaturado
Álcool tóxico, tinto de azul-esverdeado, a prevenir a perigosa confusão com álcool puro,  utilizado no pré-aquecimento dos fogões a petróleo.

— uma saca de carvão

A granel, o carvão era transportado em saca de serapilheira, repetidamente utilizada.

— uma pedra de sabão

Sabão que se fosse amarelo servia para dar cor ao soalho de madeira. Se fosse azul e branco, era, entre outros usos, para lavar a roupa.

Chegar à muita idade é isto, poder rebobinar os anos que passaram, relembrar as pequenas grandes coisas que nos foram enriquecendo, das quais só depois daremos conta. É quando a vontade chega de passar o testemunho, dizer, “no meu tempo”, sem pieguice, sem saudade, simplesmente contar com prazer, a quem agora passa, algo do que vimos, do que vivemos, do que fomos. Coisas da vida.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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