Crónica de Licínia Quitério | Um tipo comum

 

De ontem e de hoje – Um tipo comum
por Licínia Quitério

 

Era um tipo comum, bom profissional do seu ofício, dedicadíssimo aos patrões, melhor, fidelíssimo, acérrimo defensor se alguém a eles se referisse com irreverência ou mágoa. Dizia para quem o queria ouvir que gostava mais da empresa do que da sua família. Talvez levado por um copito a mais, num dia em que um patrão desqualificou o seu trabalho, perdeu as estribeiras, zangou-se a sério, avermelhou como pescoço de peru, disse ao patrão o que pensava dele e retirou-se, perante a estupefacção do dono de tão fiel criatura  que agora lhe mordia a mão. Foi raiva de tal monta, que se despediu na mesma hora e não mais voltou a pisar a empresa, outrora objecto da sua mais pura afeição. Foi por esse mundo fora, nos caminhos de aventura de português sem trabalho, até que encontrou poiso onde exercer a sua profissão. Mandou ir a família, agora subida na escala dos seus  afectos, e por lá ficou. Tem saudades da Pátria, de Fátima, e dos velhos tempos em que os comunas, mais tarde ou mais cedo, iam morar atrás das grades. Mau grado estes desgostos, sempre que pode pega na família e vem visitar o seu torrão natal que, diz, é o mais lindo do mundo. Podemos vê-lo nas fotos das festividades do Verão, sempre que possível na cadeira da frente, na fila da frente, ao lado dos ilustres, deitado em abraços sobre os mais robustos, pegando criancinhas ao

colo, trincando o courato que é o melhor do mundo, comprando no sul blusas do norte, as mais lindas do mundo, que a família veste, porque ele assim o quer. Se o filho mais velho voltar à Pátria, à terra, esperto,  trabalhador, crente e praticante como é, quem sabe não virá a ser, para começar, Presidente da Junta? De política não quer saber e tem raiva de quem sabe, mas se for preciso, por um filho tudo se faz. Ah a Família, a Família!

Está a pensar escrever um livro. Não se acha menos do que muito doutor da mula ruça que anda por aí. A vida dele ali bem contadinha para saberem como não é fácil um homem subir a pulso até à posição a que chegou, graças a Deus. Muitos amargos de boca, muitas noites sem dormir, muitos sapos engolidos. Quem o ler vai saber com quantos paus se faz uma canoa, como dizia a sua avó Guilhermina, santa mulher que já lá está na terra da verdade.

Licínia Quitério

 

 

 


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados oito livros de poesia – A decadência das falésias; Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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One Thought to “Crónica de Licínia Quitério | Um tipo comum”

  1. Interessante esta história.

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