Crónica de Licínia Quitério | Um percalço

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | Um percalço

por Licínia Quitério

 

Estava eu tranquilamente a escrever umas palavras a que outras se juntariam para comporem a crónica da quinzena quando, num movimento descontrolado, um dedo da mão esquerda ataca o teclado do computador e acontece o que não devia ter acontecido. Foi isso mesmo que estão a pensar. O pedaço de texto evaporou-se, escafedeu-se, como se diz no Brasil, e a página passou a exibir, miseravelmente, apenas as três últimas palavras já escritas. Ora o que eu vocifero quando acontece uma cena destas, não vou, por uma questão de decência, aqui citar. Finda a resma de impropérios, fico aparvalhada, quieta por momentos, a olhar o écrã, a olhar o teclado, a  olhar não sei bem para onde, a pensar, o que é que eu fiz que não devia ter feito e depois, passado o transe, desato a procurar aqui, ali, acolá, com uma insistência absolutamente incapaz e inútil, como se as palavras tivessem decidido jogar comigo ao esconde-esconde e vivessem por agora numa casota chamada pasta junto com outras irmãs que dão pelo nome de ficheiros. Não fica por aqui a minha destemperada actividade perante a máquina. Vou pedir ajuda ao Google, pois claro, o Google sabe tudo, ensina tudo, é preciso é saber fazer-lhe as perguntas, tal como acontece entre humanos. E lá vou eu ao famoso explicador expor a minha dúvida, melhor dizendo, a minha afliçãozinha. Escrevo então: “recuperar ficheiro apagado”. Não falha o tio Google e logo me dá uma lista de fornecedores das ferramentas necessárias para a operação. Começo de imediato a scrollar, a linkar, page up, page down, repeat… Concorde-se que isto em português não tinha graça nenhuma e assim até faço alarde da minha cultura em anglo-computês, tão bem cotada nos tempos que correm. Eis senão quando, oh vil tristeza, percebo que, se quiser alguma das receitas para o êxito da recuperação, terei de as pagar, embora com excelentes descontos de ocasião, rebajas, como diriam nuestros hermanos. Escusado será dizer que não perdi muito tempo com a pesquisa, reconfigurei a minha decepção de baixo astral em atitude positiva, concluí que o texto perdido, vendo bem, até era uma boa treta e pagar a explicadores etéreos não seria uma opção acertada.

Foi isto que me aconteceu, mais ou menos, que eu exagero um bocado, para atrair leitores, e às vezes até nem me dou mal.

Aconteceu, foi apenas um percalço de escrevente que teve como resultado este texto de novo ano, tão sem jeito como o mundo à beira da explosão que temos vindo a fabricar.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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One Thought to “Crónica de Licínia Quitério | Um percalço”

  1. Clara Pimentel

    Ri-me bastante ao ler esta crónica com a qual me identifiquei.
    Escrita saborosa que, ao contrário do que diz a Autora, não é sem jeito, antes pelo contrário é um sopro de ar fresco a fazer-nos esquecer por momentos este mundo à beira da explosão como bem o define.
    Clara

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