Crónica de Licínia Quitério | Sabão

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | Sabão

por Licínia Quitério

 

 

Lembram-se da expressão acintosa “vai lamber sabão”? E lembram-se do gosto do sabão lambido? Os velhos lembram-se, claro, de quando brincavam com uma caninha e uma tigela com água onde se tinha dissolvido um pedacinho de sabão que tinha servido para lavar a roupa e os demais. Os miúdos molhavam a ponta do pauzinho oco no líquido antes de a soprar e maravilhavam-se com as bolas mágicas que subiam no ar, tão levezinhas, transparentes, ganhando cores de arco-íris. Repetiam a acção uma e outra vez e maravilhavam-se sempre e percebiam que a magia era de curta duração, porque as bolas não iam longe e rebentavam, desfaziam-se, como se nunca tivessem acontecido. Às vezes os miúdos enganavam-se e chupavam a caninha em vez de soprar. Era quando a saponária lhes aflorava a boca e eles cuspiam, zangados, que o sabor não era nada simpático e aos poucos ficavam os lábios, o queixo, as bochechas ensaboadas e escorregadias. Dos balões mágicos ficava às vezes um rasto húmido e escorregadio no chão, num ou noutro móvel, para a habitual zanga das mães com que os pequenos pouco se importavam.

Recordei esta cena ao ver um miúdo de hoje a soprar um aro de plástico que mergulhava num tubo também de plástico com um líquido não sei de quê.  O miúdo soprava, as bolas mágicas formavam-se, subiam, iam longe, desciam, explodiam e o miúdo continuava com a carinha limpa, a boca a saber a não sei o quê. Foi isso que me fez pensar que hoje ninguém manda lamber sabão o estúpido do colega de ofício que tem a mania que sabe tudo e faz aquela irritante cara de convencido. Não manda porque não aprendeu o gosto da mistela de restos de sabão mais ou menos dissolvidos ao chupar a caninha em vez de soprar e que bem desagradava aos pequenos.

As crianças continuam a brincar na sua tarefa de crescer.Os brinquedos tradicionais passaram a ser objectos de museu, a morar em histórias que os avós contam e que eles nem sempre ouvem. Têm outros jogos, outros desafios, outras lutas, outros motivos para rir e para chorar, na sua difícil e breve aprendizagem de serem gente.

Tudo muda. Para melhor, para pior, neste mundo de pronto a vestir, pronto a comer, pronto a soprar. Certo gosto das coisas é que foi esquecido para que outros gostos se apresentem e os antigos passem de moda. Ficarão na memória dos que muito já viveram e quase se esqueceram do tempo de brincar.

    Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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