De ontem e de hoje – Que linda falua
por Licínia Quitério
Era assim a cantilena das meninas, no pátio da escola :
”Que linda falua
que lá vem, lá vem,
é uma falua
que vem de Belém.
Eu peço ao Senhor Barqueiro
que me deixe passar,
tenho filhos pequeninos
não os posso sustentar.
Passará, não passará,
algum deles ficará,
se não for a mãe à frente,
é o filho lá de trás.”
O barqueiro ia decidindo a sorte desta e daquela e da outra, com o dedo em riste apontando:
“Tu. E tu. E tu. Tu não.”
Uma das meninas sentia um aperto no peito e entristecia. Hoje o barqueiro voltara a rejeitá-la. Afastava-se, fingindo olhar a rua para lá do portão, uma lagrimazita traiçoeira no canto do olho, e repetia baixinho para as outras meninas não ouvirem:
“Que lin-da fa-lu-a, que lin-da-fa-lu-a …”
No pátio vizinho, por detrás do muro alto, a menina podia ouvir o coro das falas gritadas dos rapazes que não brincavam aos barqueiros com poderes de rejeitar. Faltava no muro uma pequena pedra, do tamanho da curiosidade no centro do olhar da menina. Ainda hoje ela recorda o desassossego nos bicos dos pés, o tum-tum do coraçãozito nos ouvidos, a alegria de ter avistado, do lado de lá do muro, um menino, desinteressado das brincadeiras dos outros, sentado numa grande pedra, a ler um livro de histórias, exactamente o mesmo menino que todo o tempo depois lhe foi lendo as maravilhosas histórias do mundo.
Tudo isto acontecia no pátio da escola, quando o sol a pique rendilhava de sombras a terra batida e os bancos de pedra e a brancura do poço, tapado, pois claro, não fosse fugir a donzela que no fundo vivia e, dizia-se, tinha cabelos de fogo que água nenhuma conseguia apagar.
Foi numa noite de feitiços que o Homem que foi menino contou à Mulher já não menina como no fundo dos poços mais fundos ardem as estrelas e passeia a lua os fios do luar. A donzela com cabelos de fogo, essa, talvez ainda viva no fundo do tal poço, se ainda houver o pátio, se ainda houver a escola, se ainda houver meninas que continuem cantarolando:
“Que linda falua que lá vem, lá vem…”
Licínia Quitério
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