De ontem e de hoje – Passagem de ano
por Licínia Quitério
A mulher sentiu-se incomodada pelo ruído da sala de festa, afastou-se discretamente e foi até à varanda. A noite estava fria, húmida, serena. Iluminações festivas nas ruas ao longe. Ali na azinhaga, nome a denunciar caminho sem pergaminhos de rua, luzes só as das janelas, a alegrarem encontros festivos, a teimosia de manter o que se chama tradição, de enganar o tempo, de desejar recomeços.
Não tardaria aí o minuto de comer as passas, adoçadas com sonhos de coisas boas, gente boa, saúde da melhor, no ano a chegar, de beber o espumante, de subir para a cadeira, de beijar os amigos, de apitar as gaitas, de bater latas, a espantar espíritos malignos sem direito a caberem na vida nova, de deitar fora o imprestável, da panela velha ao amor ainda mais velho.
O homem aproveitou esses momentos da noite para se passear pela azinhaga deserta de gentes e de carros. Era um homem sozinho no escuro, a claridade estava bem acima de dois pisos, liberta do caminho estreito que a apertava. Com o andar desengonçado, sinuoso, falava em voz alta, recheada de agudos, para o telemóvel bem encostado ao ouvido. A mulher reconheceu o sotaque de africano falando português, com as vogais bem abertas:
“Que saudades, maninho. Tou bem. Tou bem. Beijo na Jessica, mano. Tudo bom. Tudo bom.”
Na antecipação da explosão, acontece um silêncio breve, ansioso, quase dorido. É um segundo que se faz fronteira entre dois tempos, lugar de ninguém.
Na TV da sala ouvia-se por fim:
“… cinco… quatro… três… dois… uuum!!”
Foi precisamente ao terminar a contagem decrescente que o homem deu uma gargalhada e desapareceu ao virar da esquina. Dobrara o cabo do ano. A rir, ao telefone, com o maninho num outro continente.
A mulher continuou na varanda e viu o fogo de artifício romper o céu. Novelos de luz, flores de cor, lágrimas descendentes. Uma delas reflectiu-se-lhe no rosto. Como se pedisse guarida. “Tudo bem, maninha. Tudo bem.”
Feliz Ano Novo, foi o que ela pensou mas não disse, incapaz de subverter o silêncio que a acolheu debruçada na varanda que guardaria na memória para dobrar outros anos, tal como o homem sozinho no escuro a falar para o maninho, longe, tão longe.
Licínia Quitério
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