Crónica de Licínia Quitério | Os dentes

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | Os dentes

por Licínia Quitério

 

Só pode ser por ter ido mais uma vez ao senhor doutor dentista  que, desde há muitos anos, contribui para eu ainda conseguir atacar uma torradita, dizia eu, só pode ser essa a razão de me dispor a falar de dentes, os que se tem, os que se não tem, os que ainda não se tem, os que se volta a ter ou até dos postiços.

A propósito, ocorreram-me frases feitas sobre o tema, as quais passo a citar: “quando as galinhas tiverem dentes”, falando de um futuro improvável, ou “não lhe mostres os dentes”, que o mesmo é dizer, não lhe dês confiança, ou “ferrar o dente”, isto é morder algo ou alguém com crueza, determinação ou “como quem me arranca os dentes da boca”, significando a dor de fazer o que nos violenta. Outras mais sentenças haverá, mas por aqui me fico.

A verificação de que uma maioria de pessoas possui dentaduras saudáveis, pelo menos aparentemente, pode ser indicativo de que estamos perante uma população de razoáveis recursos financeiros, porquanto, mesmo nos países ditos mais avançados em questões de saúde, as contas do dentista são consideráveis, especialmente para as classes menos afortunadas. Sempre me faz impressão ver pessoas adultas com falta de dentes, sendo levada a pensar que a pobreza está ali residente, seja no bairro, na província, no país, ou no pedaço do continente.  De facto, porque também já sou velha, lembro-me dos velhos desdentados do meu tempo de criança, com as bocas encovadas e os queixos proeminentes. Era esse o feitio dos rostos dos velhos, num tempo em que obter uma dentadura postiça atingia um custo a tal ponto insuportável que isso nem se questionava. Era assim, os pobres habituam-se a ser pobres, não lhes falte o pãozinho, que a côdea pode ser amaciada na malga do café e para tal nem são precisos dentes. Bem vemos, nas reportagens televisivas, gentes do dito terceiro mundo com pouca vontade de sorrirem e, em boa verdade, não só por não terem dentes.
Por cá, as coisas melhoraram muito. Até se pode recorrer a generosos seguros de saúde que nos extraem boas maquias, sem anestesia, aliciando-nos com propostas de largas datas de vencimento. Com tais ajudas, os putos e outros maiores logram acesso a engenhocas que, ao fim de uns meses, lhes alinham a dentuça que nascera um bocado desajeitada. E dentes amarelos, como tinham os detestados fumadores, é coisa que se remedeia e muito bem. Qualquer clínica da especialidade procede ao branqueamento da dentadura mais escurita que ficará igualzinha àquelas que dantes eram apanágio das glamorosas estrelas da Paramount.

A fechar a crónica de hoje, acho da maior conveniência falar dos famosos dentes do sizo, esses quatro molares que só irrompem na adolescência tardia, muitas vezes com assinalável  incómodo para o utente, coitado, que já nem por eles esperava. Do sizo se chamam, com referência à idade em que se pressupõe a chegada do juízo, bem melhor diríamos, da partida da inocência e da chegada do tempo de ser adulto, com todo o cortejo de obrigações que a sociedade lhe exige e tão poucas vezes premeia.

Haja saúde e bons dentes.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

Partilhe o Artigo

Leia também

Comentário