De ontem e de hoje | Os brinquedos
por Licínia Quitério
Com os brinquedos começamos a aprender a fingir, a imitar, a jogar, a ganhar, a perder, a exercitar o grande trabalho de crescer.
Os brinquedos da nossa infância têm lugar cativo nas memórias mais antigas e servem muitas vezes de gatilho para tantas histórias que contamos, recontamos, dramatizadas ao jeito da nossa imaginação, da nossa vontade de efabular sobre um tempo antes, muito antes, que foi o nosso primeiro.
Todos nós tivemos aquilo a que chamámos brinquedo, um qualquer objecto que foi nosso companheiro de experiências físicas e emocionais, fossem elas afectos mais ou menos exteriorizados em ternos abraços e beijos, ou zangas silenciosas ou barulhentas, a bater, a quebrar, a deitar fora.
Da pequenina pedra apanhada na rua à ofertada bola colorida, da boneca de trapo ao comboio eléctrico, conforme o ano, o século, a situação económica, o lugar do vasto mundo, de tudo as crianças se foram servindo para vencerem, crescendo, aquilo a que mais tarde virão a chamar solidão, uma palavra decerto inventada que pegou e enraizou em cada mulher, em cada homem.
Em tempo de escassez, crianças abrem muito os olhos para as montras a exibirem brinquedos que às suas mãos não virão parar, mas sim a outras mãos bem mais afortunadas. Ali começarão a perceber que há quem tenha mais ou menos sorte, mais ou menos brinquedos. Um dia conhecerão diferenças entre ricos e pobres e lá nos confins das lembranças voltarão a ser o menino de olhos aguados perante a montra rebrilhante.
Hoje, as crianças ilusoriamente afortunadas, nos países onde o consumismo se alcandorou a religião, amontoam brinquedos, muitos brinquedos, quartos cheios de brinquedos, brinquedos que nunca saíram das caixas, brinquedos de deitar fora em cada ano, como os sapatos das mães ou os telemóveis dos pais. Hoje, longe dos lugares da abundância insensata, as crianças perseguidas pelas guerras, refugiadas em campos de miséria, brincam, pois brincam, com lama, com paus, com tachos vazios de comida. No meio do caos, os brinquedos resistem, insistem em procurar as mãos das crianças. Têm outros tamanhos, outras consistências, outras cores ou a sua ausência, mas enxugam lágrimas ou ateiam raivas precocemente aprendidas.
Não era isto que eu tencionava escrever depois de ter remirado uma pequena prateleira onde guardo sobras de brinquedos que me foram infância. Pensava contar de crianças felizes por brincarem, dos brinquedos que atravessaram os tempos, dos brinquedos preferidos das meninas ou dos meninos, mas as boas ideias descambaram ao passar os olhos pelo ecrã da televisão onde correm as notícias da mortandade diária que vai roubando às crianças o seu tempo de brinquedos.
Licínia Quitério
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.
Como a entendo, Licínia. Sinto a mesma angústia em cada dia mas não tenho a sua capacidade de, fazendo magia com as palavras, ser, mesmo assim, tão precisa a descrever uma realidade ão dura. Bem haja por ser uma tstemunha tão certeira e sensível destes tempos de crueldade.