Crónica de Licínia Quitério | Os bombeiros

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | Os bombeiros

por Licínia Quitério

 

O Verão e os incêndios são uma dupla recorrente que nos assusta, nos intimida, povo que somos do norte virado ao sul, que sabemos de histórias de ardências por esse país fora, quando tudo seca menos as lágrimas das mulheres, dos homens.

O fogo não se esquece de nos visitar, de nos lembrar a sua capacidade de devastação, a sua imprevisibilidade, a sua voracidade.

A meteorologia está a dizer-nos que o aquecimento aí está e podemos observar como vai assinalando a sua presença na secura da terra, nos estios prolongados e ásperos. Os nossos corpos procuram adaptar-se, mas a rapidez da mudança insinua-se na nossa pele, diz da nossa sede, do nosso desejo de água corrente que pouco a pouco vai escasseando. Ouvimos dizer que não é nada, que sempre foi assim, que incêndios sempre houve, desde que o mundo é mundo. São as vozes de quem não aceita os males e os procura exorcizar, como se o mundo não fosse movimento, mudança, para melhor, para pior, sem parar, que se parar também o mundo morre.
Certo é que bem me lembro de miúdos e mais graúdos sentirem forte atracção por bombeiros, por carros de bombeiros, por capacetes e machados luzidios de bombeiros, por sirenes de carros de bombeiros. À pergunta, o que queres ser quando fores grande, não era raro ouvir-se a resposta pronta, quero ser bombeiro. Ainda hoje essa resposta acontece, não sei se vinda só de rapazes se também de raparigas que passaram a ser bombeiras, lado a lado com os rapazes, por seu valor e direito.

Chamam-se soldados da paz, com toda a justeza, em luta com um elemento poderosíssimo, enfrentando-o, em defesa das gentes, das árvores, das casas, dos animais, muitos deles voluntários assumidos, orgulhosos da sua divisa “Vida por Vida”, quantas vezes a própria pondo em risco.

O fogo, esse ladrão, espreita e se puder queima, destrói. É da sua natureza, da sua luta inicial com a água, com o vento. Sejamos justos, também aquece, ilumina, purifica. Depois do fogo, vem o tempo da regeneração, do sono das sementes que hão-de ser outras flores, outras florestas. O tempo dessa dormência pode ser breve, mas pode também ter a dimensão das coisas eternas.

É Verão, os incêndios são notícia. Há-de haver um Inverno e notícia serão as inundações, as derrocadas. Todo o tempo pode ser de borrasca ou de bonança. As nossa dúvidas, os nossos medos é que são de todos os tempos.


Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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