Crónica de Licínia Quitério | O senhor poeta

Crónica de Licínia Quitério

 

De ontem e de hoje – O senhor poeta
por Licínia Quitério

 

Eu era uma miúda franzina, pequenina, até dar o salto para a idade de mulherzinha. Vem isto a propósito do que me lembrei por ter estado a ler em jornais antigos a notícia do encerramento do restaurante Irmãos Unidos, no Rossio de Lisboa, e do sequente leilão do recheio. Logo me pus a rever, no filme que só eu realizei, a porta giratória, coisa nunca vista, que dava acesso ao restaurante e pela qual eu entrava, confesso que a medo, depois do meu pai, antes da minha mãe. Era um alívio quando, depois do giro daqueles enormes e redondos vidros, eu me apanhava em terra firme, no lado certo do lugar onde iríamos almoçar. Os Irmãos Unidos eram na altura propriedade dos  irmãos de apelido Guisado, um deles de nome Alfredo, jornalista, poeta, deputado e um dos fundadores da Revista Orpheu, naquele mesmo espaço concebida. O meu pai perguntava pelo Senhor Alfredo e não tardava que um empregado viesse anunciar, “faça favor de entrar, o Senhor Alfredo espera pelo senhor”. Este encontro justificava-se porque o meu pai era correspondente regional do jornal República de que Alfredo Guisado era, à época, Director-Adjunto. Hoje posso imaginar o principal assunto daquelas curtas conversas em tempo de Estado Novo. Enquanto aguardávamos que o meu pai voltasse, eu e a minha mãe éramos encaminhadas para uma mesa de almoço, não sem que antes o solícito empregado tivesse trazido uma almofadinha de couro preto, “para a menina”, que se sentia envergonhada por não ter crescido mais e precisar de almofada para que a boca ficasse à conveniente altura do prato.

Do que também nunca me esqueci foi de um quadro que havia na parede com o retrato de um senhor pintado a muitas cores, com um chapéu preto, uns óculos, a escrever, sentado a uma mesa por debaixo da qual apareciam as pernas cruzadas e os sapatos muito bicudos, pretos como o chapéu, que eu não me cansava de mirar. Meu pai dizia-me “é o Senhor Fernando Pessoa, um poeta”. Só muito tarde percebi o que era um poeta e quem era de facto aquele senhor cujo retrato me atraía e distraía enquanto almoçava.

A vida deu voltas, eu cresci, já não precisava de almofada, o velho e histórico restaurante abriu falência, o retrato do senhor poeta foi leiloado e, depois de passar por vários donos, foi parar à Casa Fernando Pessoa onde hoje se encontra. Um outro, igualzinho, mas simétrico, pintou-o o mesmo Senhor Almada e hoje podemos vê-lo no Museu da Fundação Gulbenkian.

Quando visito um destes lugares, olho logo para os sapatos pontiagudos do senhor poeta, virados para a direita ou para a esquerda, conforme o Senhor Almada os quis e fez e regresso por instantes aos Irmãos Unidos e à porta giratória.

 

Licínia Quitério


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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