Crónica de Licínia Quitério | O Campo

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | O Campo

por Licínia Quitério

 

 

Retratos amarelecidos, com alguns pequenos rasgões que o tempo lhes ofertou, guardados há muito em gavetas, dão-me notícia de que terei, pelo lado materno, uma costela antepassada de camponeses. Quem sabe será do tal ossito, mais recentemente chamado ADN, em sentido lato e pouco rigoroso, que herdei este apreço pela terra de que hoje aqui vos falo. É essa atracção mal explicada que me leva a gostar de seguir a evolução dos plantios nos campos por onde passo, mais ainda naqueles que ocasionalmente me acolhem. E atrevo-me, com alguma vergonha e indisfarçado entusiasmo, a citar as favas que já estão floridas, a prometerem vagens bem cheiinhas, e os limoeiros carregadinhos que é um regalo ver e cheirar, e lamentar a moléstia que deu nas macieiras, a ameaçar outro ano de ruim colheita, que coisa desgraçada.

Campo sem animais não é campo, para meu gosto. E não é que uma ovelha nasceu ruça e já lá anda aos saltitos a acompanhar as irmãs que não são ruças! Porque pergunto o que são aqueles montinhos de terra negra, fofa,nexplicam-me que são obra das toupeiras que não largam a horta, melhor se houver cenouras ou rabanetes, lá isso não são esquisitas no roer, para arrelia dos donos da horta.   E como gosto de me sentar com gente do campo, numa pausa dos seus lavores sem fim, e ficar ali com eles, de poucas falas, longos silêncios. Nessas horas, até parece que a terra respira connosco, num ritmo que a cidade não conhece, nem entende. Os camponeses olham o céu com olhos diferentes dos nossos, falam com palavras diferentes das nossas. Ensinam que a Lua cheia não aconselha sementeiras, avisam que a chuva não tarda aí, aquelas nuvens acolá é o que dizem. Melhor dar por terminada a conversa, o dia começa a descair, vê-se bem no estendal de sombra do grande choupo, é hora de começar a juntar a palha para a cama das ovelhas, guardá-la antes que se molhe.

Eu, que tenho as mãos branquinhas, que sou urbana e o meu campo se limita a uns quantos vasos de plantas no pátio, sinto prazer em afundá-las na terra, remexer alguns torrões, perceber se está demasiado seca ou guarda a devida lentura da rega, arrancar ervas daninhas, aconchegar os pequenos caules, sei lá eu que mais. As mãos branquinhas ganham por instantes unhas vestidas de terra negra, algum arranhão e eu sinto a satisfação quase pateta de ter conversado com os meus campos de ocasião.

Que diriam disto os meus antepassados nos retratos descoloridos?

    Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

Partilhe o Artigo

Leia também

Deixe um Comentário