De ontem e de hoje – O cachimbo
por Licínia Quitério
– Mas é igual ao outro. Credo! Até me assustei. Só me faltava dar de caras com um fantasma.
– Parecidíssimo, de facto. Um pouco mais alto, talvez. E com o cachimbo no canto da boca. O outro não fumava.
– Há quanto tempo ela enviuvou?
– Dois anos, três.
– O tempo passa sem darmos por isso.
– O desgosto dela, lembras-te? Não conseguia encarar a casa sem ele. Falava em ir para um convento.
– Viúva inconsolável.
– Coitada. Parece que foram muito felizes.
– Só ela sabe.
– Estou a vê-los a passearem o cão pela trela, à noitinha. Ela com o braço enfiado no dele. Tinham um ar bolorento. De felicidade fora de prazo.
– Que será feito do bicho? Terá morrido de desgosto? Contam-se histórias dessas.
– Quem diria? Um novo amor.
– Não me faças rir. Naquela idade.
– A solidão.
– Ah sim. A velha história.
– Deixa-me adivinhar. Ele também perdeu a companheira, mas não a esperança de a reencontrar. No corpo de outra. Quando ouviu esta dizer, como já ninguém diz, “O meu Falecido que Deus haja” achou que a tinha reencontrado. Só ela, a sua chorada esposa, falaria assim, com aquele respeito beato.
Uma tarde, num breve encontro à saída da missa, numa conversa à toa, ele afirmou a medo que detestava cães. Foi aí que ela atirou, quase num grito: “Também eu!”. Depois, mais baixo, envergonhada pelo excesso: “Durante trinta anos tive de fingir.”
– Que imaginação a tua. Repara como têm um ar sereno. Juntos até que a morte os separe.
– Não creio. Uns anitos, talvez. Tantos quantos ela consiga aguentar o cheiro do tabaco de cachimbo.
– Acertaste. Olha a mão dela a afastar discretamente o fumo.
– Pois. Um dia destes confidenciará: “É muito meu amigo, mas não era bem isto que eu queria.”
– Mulher inconsolável…
Licínia Quitério
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.
Como sempre, magnífico e de uma capacidade de percepção psicológica única.
Um prazer sempre renovado, ler o que Licínia Quitério escreve.