De ontem e de hoje – Nunca me ouves
por Licínia Quitério
Ele não se apercebeu da proximidade do lago até sentir o chape-chape das rodas, as do lado direito. Logo parou, não fosse atolar-se. Disse-lhe que esperasse, que saísse do carro pela porta do lado dele. Ela não esperou, abriu a porta e saiu, deixando-o nervoso, inquieto. É por isso que não se cala sobre o assunto:
”Nunca me ouves. Ou não ligas. Não queres saber. Eu disse-te que esperasses para saíres pela porta do meu lado. Gritei-te. Nada disseste, abriste a porta do teu lado e saíste. É como quando aviso que não venho jantar. Depois dizes que não tinhas ouvido. Pois não. Estás sempre a pensar não sei em quê. Nem me interessa.”
E continuava a remoer o sucedido, em frases curtas, a ilustrar a acção:
“Não ouves. Não perguntas. Não te interessa. Há quantos anos não me ouves? Não dás respostas, não fazes perguntas. Falas, falas muito. É a ti que contas as histórias do dia, as histórias dos outros, as histórias do mundo. Só eu nunca entro nessas histórias. Como se fosse invisível ou me tivesses apagado.”
Continuou, agora para si próprio, as palavras desfeitas no silêncio:
“O lago era apenas um charco com uns palmos de fundura. Naturalmente, seguiste caminhando, a água a subir-te pelas pernas. Ias estranhamente serena. Foste até ao fim do charco. Voltaste de novo pelo caminho da água, com a saia molhada moldando-te os joelhos. Tive vontade de te ir buscar, de te pegar nos braços, de fazer amor contigo sobre a relva da margem”.
Não, não foi capaz. Ficou de pé, olhando-a, vendo-a aproximar-se, tirar os sapatos, escorrer-lhes a água, entrar no carro e fechar a porta. Ela sorria e ele desejou muito beijar-lhe a boca. Não foi capaz.
Disse, como sempre dizia:
”Eu bem te avisei.”
O sorriso dela apagou-se. Ligou a ignição. O carro levou-os estrada fora, a desviar-se das terras encharcadas, das pedras negras do silêncio.
Licínia Quitério
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