Crónica de Licínia Quitério | Novos vizinhos

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | Novos vizinhos

por Licínia Quitério

 

Disse-me o sujeito, com um sorriso que presumi de satisfação, que no prédio tal veio morar uma senhora oriunda de um país asiático e acrescentou que é uma pessoa muito simpática. Confessou a surpresa que sentiu quando percebeu que ela falava inglês e um titubeante português. E o meu interlocutor continuou, a explicar-me sem que eu lhe tivesse sugerido alguma questão:

– É natural que ela, que chegou há pouco mais de um ano ao nosso país, se expresse em inglês da Índia. O português vê-se que é de aprendizagem recente, a necessidade assim a obriga. Porque é que eu havia de ter ficado admirado se foram colonizados pelos ingleses? A gente às vezes esquece-se que não fomos só nós que fomos pelo mundo a dominar outros povos. Os ingleses, claro, vieram-se embora da Índia, mas deixaram a língua. Aqui ao lado, não sei se sabe, moram brasileiros. Esses fomos nós que colonizámos e agora falam o português com aquela pronúncia muito viva a que a gente já se habituou.

Aproveitando uma breve pausa que fez, a organizar alguma ideia, arrisquei:

– É assim,  esta rua vai-se tornando um espaço multicultural.

Logo pegou no termo:

– Exacto, e é interessante, a diferença enriquece-nos. Nós saímos para o mundo e o mundo agora vem até nós.

Dizia tudo calmamente, suponho que a gostar de abordar o assunto com quem o ouvia. De novo, atalhei:

– O Agostinho da Silva falou disto.

E ele, os olhos com mais brilho, acrescentou, de novo a sorrir:

– Os do Sul haviam de vir para o Norte, era o que ele dizia. Era um homem muito sabedor, o Agostinho da Silva, muito sabedor.

E lá foi o sujeito, rua abaixo:

–  Até um dia destes.

Não foi bem uma conversa, nem sequer com alguém do meu convívio, mas deu-me este apontamento e eu sei bem porquê. No mundo de hoje, aflito e perigoso, atravessamos os dias imersos em frases que espelham os mais diversos sentimentos sobre a tragédia dos migrantes, tantas vezes infelizmente eivadas de ódio ou temor, que, se bem atentarmos, se confundem. Inteligente e diferente foi o episódio que aqui me trouxe.

Os senhores do mundo e seus apaniguados não se calam a propósito da gente em debandada à procura de pão, paz, vida. Comprazem-se em confundir populações inquietas, desinformadas, amedrontadas.

Eu fico atenta à nova vizinhança, procurando aprender alguma coisa sobre quem teve de deixar o seu canto, tal como nós, os “portugas”, por diversas vagas, fomos e continuamos obrigados a fazer.

Há dias assim que começam bem, que nos limpam da névoa persistente, que nos animam.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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