Crónica de Licínia Quitério | Mercados

 

De ontem e de hoje – Mercados
por Licínia Quitério

 

Agora que o Mercado Municipal de Mafra foi renovado, ao gosto dos modernos mercados por esse país fora, agora que já pouca gente lhe chama “Praça”, lembrei-me de deixar aqui excertos de um texto que escrevi há muito. Para memória futura, das gentes, das falas, desse ontem com outro sabor, outro ritmo:

NA PRAÇA

Vai-se à praça dar uma espreitadela. Da entrada, abarca-se com o olhar os tabuleiros mais distantes, semi-cerrando o olhar, aconchegando o casaco a afastar um súbito arrepio. O ar da praça, àquela hora da manhã, é lavado e fresco. “Ó senhora Estrudes, estas nabiças são de hoje?”. “Atão na haveram de ser, valha-a Deus. E olhe! Trazia quarenta mãos delas e só há o que vê”. “E quanto custa isso?”. “Por ser para si, e só para não dizer que as levo para casa, faço-lhe os dois molhos por trazentos escudos”. “Duzentos?”. “Traazentos!”, confirma, enquanto remexe os trocos no bolso fundo da bata e faz vaguear o olhar matreiro pelos ares, fingindo ignorar que ainda ali estou. Divirto-me com este toca-e-foge. “Não, não quero.”. Retiro-me devagar, dando-lhe o tempo preciso para me chamar. “Psst! Ó menina!” (Só aqui me chamam ainda de menina.). ”Leve lá por duzento xinquenta. Ai, isto na tá p’ra ninguém”.

Na praça conversa-se, de lugar para lugar. É preciso enganar o tempo. “Ó priga, qué feito da tu mãe? Há canto tempo ná a vejo!”. “Tá rija e tesa. Tomara você e eu chegar à idade dela com aquela genica toda. Ah mulher dum sacana! Vai a caminho dos satenta e nove. Faz em Dezembro se lá chegar, se Deus Nosso Senhor quiser. Só lhe digo que inda onte mondou umas leiras de nabiças que só queria que você visse.”.

A praça é assim. Não é como o supermercado. Ainda há tempo para dois dedos de má língua. “Ora, tudo faz parte da vida! E, a bem dizer, isto não é dizer mal de ninguém. Se não for verdade, estou a vender pelo mesmo preço que comprei.”. As freguesas encostam-se aos tabuleiros. Primeiro ao de leve, só a redondeza da barriga a roçar a moldura. Depois, perante o aproximar de uma conhecida, apoiam o braço, com firmeza. Ficam um bocadinho por ali, a falar. Dos achaques. “Com este tempo húmido, tenho andado à rasquinha aqui deste artelho. Atão na cama, mulher, nem queira saber, parece formigas a subir pela canela da perna. Os anos não perdoam. Isto tem andado mesmo bera.” Dos mortos. “Coitado, parece que vendia saúde, sempre com uma graça, inda a semana passada tive com ele nas Finanças.”

Na praça não há artigos empacotados. O senhor Joaquim tem o tabuleiro tão desarrumado que a rama das cenouras espreita por entre os nabos e os limões. Mas, se procurarmos bem,( “Prècure a senhora à su vontade!”), por baixo de toda aquele emaranhado, encontramos umas beterrabas gorduchas. “Já me têm dito que faz bem ao saingue. Dizem, que eu cá disso na sei nada. E na quer também um pipino? Olhe que lindo!”.

Licínia Quitério

 

 


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados oito livros de poesia – A decadência das falésias; Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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