De ontem e de hoje | Incêndios
por Licínia Quitério
Amargos os dias de incêndios quando as notícias nos chegam sobre o avanço impiedoso do fogo que ventos fortíssimos atiçam.
Vivemos, sentimos, sabemos, a convulsão climática que se opera no Planeta. Quem sabe num futuro muito distante, quando as febres das águas e dos ares abrandarem, no corpo sólido da terra, transtornado e refeito, ganhem vida, mesmo com outra forma, outro motor de pensamento, seres tão ignorantes como nós que se interroguem sobre a história, a razão, o destino do lugar que ocupam. Deixando-me ir em delírio, posso vê-los a catarem fósseis de humanos a que chamarão outros nomes que não dinossauros, noutro alfabeto, noutra fala, bem mais suave, mais tranquila, ainda inocente de guerras.
Certo é que perdemos a noção da dimensão das tragédias à força de tanta e tão repetida informação, numa avalancha de números que somos incapazes de avaliar, porque as desgraças não são mensuráveis. Num mundo assolado por guerras sangrentas, estúpidas e inúteis como todas as guerras, cansados de saber de tantos mortos, de tanta devastação, ainda nos comovemos com a má sorte das cidades vítimas de guerras ou de incêndios ou de outros cataclismos. Vemos, por exemplo, imagens de Gaza martirizada pelos combates e pensamos, que horror, parece que houve por ali um terramoto. Vemos as imagens das cidades por onde passou o fogo, o vento, o inferno, e pensamos, que horror, parecem cidades bombardeadas. É assim a nossa confusão, a nossa estupefacção perante as calamidades, sejam elas nascentes da raiva dos homens ou das fúrias naturais. Vêm-nos à memória os versos de Camões, hoje tão citado e pouco estudado: “Onde pode acolher-se um fraco humano,/Onde terá segura a curta vida,/Que não se arme e se indigne o Céu,/Contra um bicho da terra tão pequeno.” e também “Na terra tanta guerra, tanto engano,/tanta necessidade aborrecida”.
As evidências da nossa fragilidade não impedem porém que continuemos iludidos pela fama, pela vitória, pela riqueza, pela supremacia, como se fôssemos eternos, confiando que o mal será sempre para os outros.
A Terra aquece, os homens desprezam os avisos e continuam a deitar achas na fogueira, melhor dito, a queimar petróleo, árvores, a usar máquinas que vão envenenando a atmosfera, apressando o colapso.
Não vou terminar este texto sem uma nota discordante do incomodativo pessimismo atrás explicitado, e assim declaro a minha esperança de que muito ainda pode ser feito para reverter em beleza os cenários de pesadelo. Para isso há os sonhos dos homens teimosos que não se importam de ser acusados de perseguir utopias. São eles que fazem girar a roda da fortuna, que despertam as vozes do mundo, a música do mundo, que outros se esforçam, em vão, por calar. São eles a face luminosa da Humanidade.
Licínia Quitério
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