Crónica de Licínia Quitério | Formiguinha

 

De ontem e de hoje – Formiguinha
por Licínia Quitério

 

Formiguinha, asinha, asinha, formiguinhas, formiguinhas, à cata nas prateleiras, pega aqui, larga acolá, não preciso, não preciso, sempre levo, sempre levo, posso vir a precisar, é assim, nunca se sabe, mais barato, tão barato, levo três, só de uma vez, larga isso, larga isso, olha que a mãe está zangada, e cansada, e cansada, anda lá que tenho pressa, e o almoço, quem o faz, novas marcas, marcas brancas, muitas, muitas, muitas marcas, eu sei lá se esta é melhor, leio, pois, aqui diz tudo, mas a letra é tão pequena, levo outra, e mais aquela, olha o

Nunes mais a gaja, faz de conta que não vês, olha a conta, olha o carro que está cheio, empurra que eu vou ali, chocolate, tu nem penses, e as borbulhas, quais borbulhas, só faz bem, é o que dizem, olha as horas, não ouves o telemóvel, desligou, era o João, enganou-se de certeza, passa a vida ao telefone, deixa lá, não paga mais, já tem o novo pacote, e quem lhe paga o pacote, lá estás tu, deixa o rapaz, as cenouras, as cenouras, e as laranjas, as laranjas, já está tudo, acho que sim, anda lá que a mãe tem pressa, formiguinhas, formiguinhas, a caminho do celeiro, a encher o merceeiro, é Domingo e é Janeiro.”

Eu escrevi esta brincadeira há uns tempos, muito antes do IVA zero que trouxe uma mudança extraordinária nos preços dos bens essenciais (?) que as formiguinhas catam num frenesi, num desatino, agora ainda mais desatinadas, a aproximarem os olhos, os óculos, das etiquetas, a acocorarem-se quantas vezes, não vá o IVA zero pespegar-se nas prateleiras rentes ao chão.

Coitadas das formiguinhas, bem esforçam as cabecinhas, quanto é que custava ontem, mas quanto é que custa hoje, quanto é que eu vou poupar, ó diabo, na conta já me enganei, a maldita matemática, afinal está mais caro, é a crise, é a crise, é a guerra, é a guerra essa malvada, é o vírus, é o vírus, nunca se sabe se volta, é a seca, é a seca, é o clima, é o clima, bem se vê que está mudado, tudo muda, pois então, só a fome não se muda, vai de caixote em caixote, pela calada da noite, não lhe importa o IVA zero.

Licínia Quitério

 


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados oito livros de poesia – A decadência das falésias; Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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