De ontem e de hoje – Falar sozinho
por Licínia Quitério
Fala muito sozinho, em casa, sem que ninguém o oiça, só o King, cão de raça, cão bonito, fiel como se diz de um cão ou de um criado, sempre obediente às ordens, vem cá King, vai King, quieto King, senta King, deita King, muito mais obediente do que qualquer criado, útil, com aquele olhar de eterno mendigo, só mesmo o King para lhe ouvir os disparates e não os contar a ninguém. Que pode um homem querer mais do que uma companhia assim, depois de perdida a outra, depois do filho ganhar distância, um homem de poucas falas, para mais feito chefe, um chefe não conversa com os subordinados, um homem deve saber o terreno que pisa, um homem arrumado, tudo nos seus lugares, as raras discussões com a Berta tinham sido por questões de arrumação, nunca a convenceu a ordenar as meias por cores, ela dizia sim, tens razão, mas voltava a misturar as cinzentas com as pretas, que importância tinha isso, isto um dia vai passar, a trela King,
busca, vamos à passeata. A noite invulgarmente serena trouxe-lhe mornas recordações da infância, quando o pai o levava até ao clube dos homens que o ensinavam a jogar dominó, e a mãe ficava com os seus trabalhos de mãe e de mulher, a levantar a mesa, a lavar a loiça, a preparar as roupas que eles no dia seguinte haviam de vestir, a abrir as camas, a mãe era um anjo que velava por tudo e todos naquela casa, pensando melhor e porque anjos não são gente, era uma santa, a sua santa mãe, que falta lhe fazia, estaria agora em paz, ao lado do seu homem, que raio, tem ciúmes dele, sempre teve, não quer pensar nisso. Bonita, a mãe, o pai apaixonara-se por ela para toda a vida, duas vidas, que duraram pouco, a doença malvada do pai e pouco depois, mal um ano escoado, foi ela que desistiu, a cabeça enfraqueceu, perdeu a noção dos dias, dos lugares da casa, chamava-lhe Jorge, julgava que falava com o marido, dizia até que enfim voltaste, a comida está a arrefecer, e depois o olhar perdia-se no labirinto que era agora a sua outra casa, só muros, muitos muros, uma escuridão maior que a de todas as noites, segurava a mão do filho e segredava, tira-me daqui, eles batem-me, e puxava os cabelos de repente embranquecidos, uma velha demente, a mãe, tem tantas saudades dela, mulher mais asseada, sempre tudo em ordem naquela casa, e o leite-creme queimado, nunca mais ninguém o fez como ela, quando chegar a casa conto isto tudo ao King.
Licínia Quitério
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