Crónica de Licínia Quitério | Eleições

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | Eleições

por Licínia Quitério

 

Passada que foi a emoção provocada pelos resultados das eleições para a Assembleia Legislativa do meu país, mesmo assim ainda me é difícil alinhar ideias e palavras consequentes para a crónica desta quinzena. Tentarei.

Algo de muito assustador está a acontecer neste Portugal onde, recitando a cartilha dos movimentos neo-fascistas mundiais, um rapaz travestido de messias arrebanhou muita gente para o voto a seu favor. Não lhe foi difícil, o espertalhote fez vibrar os pontos mais frágeis da multidão comovida e piedosa que louvava em lágrimas o salvador das suas vidas sem graça.

Não é difícil fazer apelo a uma população que viveu a ditadura mais longa da Europa no século vinte, a quem deram os famosos três efes de Fado, Futebol, Fátima, até entorpecer e só acordar num dia claro de Abril, honra e glória dos que resistiram, sofreram, morreram, para quebrar as cadeias da ignorância, da pobreza, da exclusão, da indignidade.

São palavras amargas estas, mas não sei dizer doutra forma a pena que sinto por ver renascer os novos-velhos fascistas a aproveitarem fraquezas deste povo português tão sofrido, descrente do Abril interrompido e mal-tratado e caluniado.

Porque sou do tempo do salazarismo quando as mulheres não podiam votar, a não ser que tivessem um património assinalado, que esperei por Abril para participar nas primeiras eleições livres, que sei da alegria  por haver um novo respirar e a esperança num futuro melhor, vejo agora as eleições armadilhadas por quem as quer usar para práticas de ódio e mentira.

Foram dias sim, de responsabilidade e regozijo, aqueles em que fiz parte das mesas de voto, ainda no tempo em que esses trabalhos não eram remunerados, mas isso não nos importava, porque acreditávamos.

O mundo mudou, eu envelheci, muitos amigos já partiram, e eu continuo a guardar os sonhos num novo tempo de inteireza e liberdade como aquele que, embora brevemente, nos foi dado viver.

É isto que gostava de contar àqueles jovens de hoje que correm o perigo de se deixarem prender em redes virtuais pelos falsos profetas que habilidosamente tecem fábulas de mal querer e os tentam seduzir para a sua caverna de vampiros.

Termino afirmando que, passado este tempo de sujidade, outro virá bem mais limpo, como sempre  acontece nas voltas da história dos humanos, também neste país que é o meu, onde toda a grandeza e miséria acompanham as nossas vidas.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

Partilhe o Artigo

Leia também

One Thought to “Crónica de Licínia Quitério | Eleições”

  1. Maria Clara Pimentel

    São, infelizmente, muitas as razões para este fenómeno que, aliás, e também infelizmente, não é só português, Mas não é este o lugar para as discutir nem a minha voz tem qualquer peso para isso.
    Só posso dizer que compreendo muito bem o choque e a desilusão de Licínia Quitério e que, como ela, me recuso a abdicar do sonho e da esperança.

Comentário