De ontem e de hoje | DIES IRAE
por Licínia Quitério
Há semanas assim em que tudo acontece, no mundo, em nós, no perto, no longe, uma girândola de notícias indesejadas a invadir-nos as horas, a desafiar-nos os nervos, a provocar-nos sentimentos tão diversos como diversa esta aventura de viver, mesmo nos anos da última etapa.
Sei lá por onde começar, sei que não respeitarei datas nem categorias nem grandezas nem graus de importância nos outros ou em mim, apenas me deixarei levar num rio de memória recente, de águas turvas, ora geladas ora escaldantes. Poesia barata, dirão, pois será, que quando a prosa é demasiado crua, golpeante, desalinhavo gramáticas, atrevo-me a destemperos vocabulares.
AS GUERRAS
Houve muitos dias, todos os dias, das guerras que parecem as mesmas, sem nunca acabarem, só que com outros nomes, outros tiranos, outros mártires de qualquer religião, outras fomes, os ódios os mesmos, as ambições as mesmas de submeter as terras, os corpos, por demais devastados. Entram-nos em casa e ficam-nos nos ouvidos nomes de desconhecidos alfabetos, de estranhas fonéticas, alguns nomes com Z, outros com Y, outros com muitas vogais, outros com muitas consoantes, letras irmanadas como não aprendemos quando começámos a falar. Com os nomes vêm os sons, os gritos, os estrondos, os silvos e o silêncio e as lágrimas das mulheres, dos homens também. De vitórias e derrotas já nada queremos saber, porque tudo é perder em tempo de guerra e o nosso tempo vai ficando curto para tanto sofrimento.
AS TEMPESTADES
Como se as guerras fizessem intervalo, há os dias em que as notícias as relegam para outros horários, outros tempos de emissão. Cabeçalhos e rodapés, televisivos ou impressos, são tomados pela fúria das tempestades, com aviso, sem aviso, terríveis, imensas, também elas com nomes, ora de mulher, ora de homem. É o fim do mundo, é o clima que muda, são os pecados dos homens, seja qual for a causa próxima ou remota que se invoque o que se sabe é que as águas tudo arrasam, tudo arrastam, tudo quebram, tudo matam. Dias de aflição, de compaixão, ao menos agora a compaixão parece ressuscitada, é preciso salvar este, aquele, isto, aquilo, pouco importa quem é, de quem é, ou antes, de quem era. Vai demorar a reposição de alguma ordem na cidade, na vida dos que foram poupados, menos demorará todavia o apagamento da fraternidade que a tormenta reclamou.
OS AMIGOS
Há semanas assim, há, quando perdemos amigos de sempre que julgávamos para sempre e com isso perdemos também um restinho de inocência que julgávamos a salvo.
Outras semanas hão-de vir e os dias acalmarão a ira, pelo menos até ao próximo desastre, na roda à roda da vida.
Licínia Quitério
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.