Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O PBX

 

De ontem e de hoje – O PBX
por Licínia Quitério

A miúda gostava das tardes quentes de verão na aldeia quando a tia Arminda, encostada a porta da rua da saleta, limpava com um lencinho as pérolas de suor da testa e do decote e se sentava frente ao aparelho do PBX para tirar cavilhas, meter cavilhas, baixar patilhas, levantar patilhas, com o olhinho atento às luzinhas que acendiam ou apagavam. E a voz era doce, delicada, ao dizer, Boa tarde Torres, Dê-me troncas, Ó Torres dê-me o nove, Como está senhora condessa, Eu mando chamar, pode estar descansada, Um momento, ó sete. A miúda ouvia extasiada esta linguagem cifrada com que a tia falava para o aparelho onde os fios nunca se enredavam. Dona Arminda, a única funcionária pública da aldeia, era respeitada, adorada. A cabine com o telefone ficava no canto direito da entrada da casa, numa tentativa de reserva das conversas havidas. Repartição multi-funcional, a saleta de Dona Arminda era também delegação da estação de correios da vila próxima, com balança pesa-cartas e outra maior para os volumes, lacre, novelos de cordel, gavetinhas para selos. Tudo em obediência a Dona Arminda, tratada respeitosamente por carteiros e estafetas.

A miúda não faltava à chegada do correio. Sentava-se num banquinho baixo, abria os grandes olhos que ainda não tinham aprendido o sorriso de circunstância, entrelaçava nos dedos os longos cabelos fulvos e ali ficava, sem perder um som, um esgar, um gesto. Já conhecia os nomes de todos os que diariamente apareciam na esperança de notícias de alguém que nem sabiam se existia. Pela voz de Dona Arminda chegavam recados de nascimentos, de doenças, de heranças inesperadas, de raras visitas anunciadas. Eram muitos os que não sabiam ler. Dona Arminda lia alto, todos ouviam, mas ninguém parecia importar-se com a devassa. Logo ali ficava aprazado o dia e hora em que Dona Arminda escreveria a resposta. Ora então diga lá, e a Maria do Lucas ditava, meu querido irmão, espero que te encontres bem que nós cá graças a Deus vamos indo mas desde que o Artur cortou a mão… Aqui Dona Arminda interrompia, ó Maria, o teu irmão já sabe disso, não vale a pena estares sempre a contar-lhe o mesmo. A Maria aceitava a reprimenda, sim senhora Dona Arminda, eu hoje estou sem cabeça, ai a vida, Dona Arminda. Pronto, mulher, deixamos isto para amanhã se vossemecê se sentir melhor e escrevemos uma carta bonita. Maria limpava uma lágrima, sim Dona Arminda, a senhora é uma santa, não tenho como lhe pagar. Deixe lá isso, Maria, vá, vá, que a freguesia ainda não acabou.

Ainda hoje recorda aquelas tardes quentes na aldeia, com as cartas, o PBX, a tia e o banquinho em que a tal miúda se sentava.

Licínia Quitério


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados oito livros de poesia – A decadência das falésias; Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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